#CancelaNetflix: a batalha entre a esquerda e a direita chegou ao streaming

Dilma Rousseff diz que a série O Mecanismo, baseada na Operação Lava-Jato, é "uma visão distorcida da história, com tons típicos do fascismo latente no país". E Lula da Silva promete "processar a Netflix".

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O actor Arthur Khol encarna João Higino, inspirado em Lula da Silva DR

Um ex-Presidente chamado João Higino, mas com barba e trejeitos de Lula da Silva; uma Presidenta chamada Janete, último nome Ruscov; e um vice-presidente Thames, primeiro nome Samuel, que rima com Michel, são algumas das peças pouco subtis com que o realizador brasileiro José Padilha montou um puzzle televisivo intitulado O Mecanismo. A série, "inspirada levemente em factos reais" sobre a Operação Lava-Jato, chegou à Netflix há uma semana, e bastaram algumas horas para que o debate no país seguisse noutra direcção: cancelar ou não cancelar a conta no serviço de streaming?

O movimento #CancelaNetflix e #BoicoteNetflix, no Twitter, já provocou acesas discussões no Brasil, nos jornais e nas redes sociais, de um modo geral divididas por dois campos ideológicos: a esquerda quer cancelar, a direita quer fazer pipocas e ver os oito episódios da série sem parar.

A questão é tão sensível que motivou uma tomada de posição de Dilma Rousseff. Num texto no seu site, a antiga Presidente do Brasil, destituída em 2016, chama à série O Mecanismo "uma visão distorcida da história, com tons típicos do fascismo latente no país".

"A propósito de contar a história da Lava-Jato, numa série 'baseada em factos reais', o cineasta José Padilha incorre na distorção da realidade e na propagação de mentiras de toda sorte para atacar a mim e ao Presidente Lula", diz Rousseff, acusando o realizador de "inventar factos". "Não reproduz fake news. Ele próprio tornou-se um criador de notícias falsas."

E dá exemplos. A série sugere que o escândalo do Banestado (sobre o envio ilegal de 19 mil milhões de dólares para os EUA por políticos e empresários através do sistema financeiro público do Brasil) aconteceu em 2003, no início do primeiro mandato de Lula da Silva, mas o caso rebentou em 1996, durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso.

Acusando Padilha de praticar "assassinato de reputações", Rousseff salienta uma outra passagem da série, sobre o uso da expressão "estancar a sangria", que é posta na boca da personagem inspirada em Lula da Silva – e que é, no fundo, a passagem que tem motivado mais críticas nas redes sociais.

"Na série de TV, o cineasta ainda tem o desplante de usar as célebres palavras do senador Romero Jucá (PMDB-RR) sobre 'estancar a sangria', na época do impeachment fraudulento, num esforço para evitar que as investigações chegassem até aos golpistas. Jucá confessava ali o desejo de 'um grande acordo nacional'. O estarrecedor é que o cineasta atribui tais declarações ao personagem que encarna o Presidente Lula", diz Rousseff.

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Já esta quinta-feira, num comício em Curitiba, o ex-presidente Lula da Silva disse que vai "denunciar os responsáveis" por aquilo que diz ser "uma peça que é mais uma mentira". "Nós vamos processar a Netflix, nós não temos que aceitar isso. Eu não vou aceitar", disse Lula da Silva.

Ouvido pelo site Observatório do Cinema sobre estas e outras acusações de que está a contribuir para a criação de ruído no debate sobre a corrupção no Brasil, o realizador José Padilha disse que a polémica é "boboca" (tonta).

"A repetição do uso de uma expressão idiomática comum, como 'estancar a sangria', não guarda qualquer significado", disse Padilha, levando ainda mais longe a tentativa de fintar a acusação de que pôs na boca de Lula da Silva, de forma deliberada, uma expressão usada pelo actual líder do partido de Michel Temer: "O facto de o Jucá ter usado a expressão 'estancar a sangria' não a interdita."

Quanto à acusação de que "faz ficção ao tratar da história do país, mas sem avisar a opinião pública", nas palavras de Dilma Rousseff, Padilha deixa uma resposta seca: "Na abertura de cada capítulo da série avisamos que factos foram alterados para efeitos dramáticos. Para o pessoal que sabe ler, portanto, não há ruído algum!"

 

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