E agora, Manuel, o que é que vai ser de nós?

O Manuel Reis fez tudo porque não havia nada. Fez sempre o que ele queria, o que ele achava bonito, o que ele achava bom. Nós beneficiávamos. A nossa Lisboa à noite era a Lisboa dele. A noite do Manuel Reis era Lisboa.

Era bom dançar com Manuel Reis. Dançava horas a fio, junto ao chão, com um estilo só dele, sem vergonha de transpirar ou perder a pinta. Estava a divertir-se. Era bom vê-lo a divertir-se.

Era uma justiça. Tinha sido ele a criar o sítio. Tinha sido ele a escolher as pessoas que lá trabalhavam e aquelas que lá iam. Tinha sido ele a dar a festa. Ninguém merecia dançar tanto como ele. E a maneira dele dançar mostrava que ele sabia.

O Manuel Reis fez tudo porque não havia nada. Fez sempre o que ele queria, o que ele achava bonito, o que ele achava bom. Nós beneficiávamos. A nossa Lisboa à noite era a Lisboa dele. A noite do Manuel Reis era Lisboa.

E éramos nós. A noite do Manuel éramos nós. Nós e ele. Juntos para sempre.

O Manuel era extremamente generoso: gostava muito dos outros. Poderia ter sido um egoísta e feito tudo só para ele e para os amigos. Mas não. O Manuel não era só um criador de amigos — era um criador de amizades.

Não queria ser uma figura pública. Insistiu sempre em ser uma figura particular, muito particular — íntima até. As pessoas normais contentam-se com uma dezena de amigos. O Manuel tinha centenas de amigos e, poucos anos depois, milhares.

Era bom falar com ele porque ele ria-se muito, tinha opiniões desconcertantes, era muito afável. Ao longo da minha vida fui sabendo de amizades que ele fez com pessoas que não tinham nada a ver com a vida nocturna de Lisboa. Não exagero se disser que toda a gente que o conheceu gostava muito dele.

Até pessoas preconceituosas que tinham começado por distanciar-se dele acabavam por adorá-lo. O Manuel abria as cabeças das pessoas — dava-se a esse trabalho. Repreendia os reaccionários mas educava-os, dava-lhe uma segunda oportunidade e depois tornava-se amigo deles, como se nada tivesse acontecido.

O Manuel Reis dava segundas oportunidades. Eu que o diga — mais as centenas de outras pessoas que se portaram mal numa noite e se viram proibidas de entrar no Frágil. Passávamos uns meses de castigo — duros, entediantes, desesperados — e deixava-nos entrar outra vez. Sem nos humilhar. Sem nos fazer prometer que não voltaríamos a fazer figuras tristes.

As pessoas adoravam o Manuel porque ele adorava pessoas. A primeira vez que levei as minhas filhas, Sara e Tristana, a uma festa do Manuel, eram elas adolescentes impossíveis, ele falou uns minutos com elas e elas desataram a rir. Várias vezes ao longo dessa noite elas insistiram em dizer-me que tinham gostado muito do Manuel e que doravante queriam ir a todas as festas do Manuel. E foram.

Acho melhor falar nas festas do Manuel Reis do que falar só no Frágil e no Lux. O Manuel fazia festas em todos os lugares com que engraçava. Era um salvador de edifícios desprezados, um ocupador de sítios vazios, um animador de espaços mortos e, sobretudo, medindo muito bem as palavras, um criador de comunidades. É tão simples como isto: não conheci outro.

Tinha cuidado em tudo. Agia sempre como se fosse rico. Confiava cegamente nas pessoas que escolhia. Dava-lhes carta-branca. Deixava-os até fazer merda. Não interferia. Se fizessem merda nunca mais os convidava a fazer o que queriam — ajudava-as porque tinham mostrado que precisavam de ajuda.

O Manuel era inteligentíssimo, ousado, bondoso, desobediente, cintilante, elegante — e tão empático como era simpático.

Parece que estou a falar dum homem perfeito? Parece. A única coisa que ele não tolerava era a deslealdade. Isso não é defeito numa pessoa extremamente leal, com quem se podia contar sempre.

Talvez se o tivesse conhecido melhor pudesse falar noutros defeitos — mas não acredito. Mesmo que ele fosse secretamente mau (uma impossibilidade) só saberiam os amigos mais íntimos. Mas os amigos mais íntimos ainda gostavam mais dele do que nós.

Mesmo que ele fosse secretamente mau (uma impossibilidade) não é sublime que tenha sido sempre tão bom para os milhares de pessoas que o conheceram? Não foi só bom para as nossas noites, para as nossas vidas, para os nossos gostos, para os nossos prazeres, para os nossos amores-próprios, para as nossas dignidades e para as nossas almas. Foi bom para as nossas bondades, pôs-nos a falar e a dançar uns com os outros como se tivéssemos sido amigos desde sempre.

Lembro-me das vezes que dancei com o Manuel Reis e lembro-me dele, bem-disposto, bem-disposto por estar a dançar comigo, por estar a dançar com toda a gente, por estar a dançar.

Bem posso chorar. Nem morrendo havemos de esquecê-lo — ou deixar de gostar tanto dele.

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