Ferrovia: a bitola é uma falsa questão? Um contraditório

A diferença de bitola ferroviária em relação ao resto da Europa é uma questão importantíssima, porque é uma ameaça à competitividade futura da economia portuguesa.

No artigo “Ferrovia: a bitola é uma falsa questão”, Carlos Vasconcelos (Medway) defende que “a questão da diferença de bitola é uma falsa questão, não tendo qualquer relevância para a questão da competitividade da ferrovia e, muito menos, para a competitividade das exportações nacionais”. Nesse artigo o autor fundamenta a sua opinião em quatro exemplos, que se analisam de seguida.

1. Tráfego fronteiriço Portuga/Espanha

Artigo “Ferrovia: a bitola é uma falsa questão”

"Espanha continua a ser o maior parceiro comercial português, representando cerca de 50% das nossas trocas comerciais com o exterior. Deste volume de mercadorias transaccionado entre os dois países ibéricos, somente cerca de 4% é movimentado por caminho-de-ferro. O remanescente (96%) circula essencialmente por rodovia (mais de 90%).

Sendo a bitola dos dois países exactamente a mesma, facilmente se conclui o que é óbvio: não é por causa da bitola que a ferrovia não é competitiva. Nem é a incapacidade competitiva da ferrovia que retira competitividade às nossas exportações para Espanha."

Contraditório

É verdade que actualmente “não é por causa da bitola que a nossa ferrovia não é competitiva”, no tráfego de mercadorias com Espanha, mas isso não demonstra que a questão da bitola é uma falsa questão. Existem outros factores que tornam a nossa ferrovia pouco competitiva, nomeadamente:

  • Pendentes elevadas, que reduzem a carga rebocada máxima;
  • Outros problemas de interoperabilidade (obstáculos técnicos à livre circulação de comboios) entre as redes convencionais portuguesa e espanhola, como i) diferenças nos sistemas de sinalização e controle de velocidade, ii) diferenças nos sistemas de alimentação eléctrica.

Na argumentação apresentada nada demonstra que se estes factores fossem eliminados e existissem diferenças de bitola, esta não seria um problema.

A afirmação “Nem é a incapacidade competitiva da ferrovia que retira competitividade às nossas exportações para Espanha” é verdadeira hoje em dia, pois a rodovia ainda tem uma competitividade razoável, mas pode deixar de ser no futuro se a rodovia perder competitividade por razões ambientais e energéticas.

2. Tráfego nacional

Artigo “Ferrovia: a bitola é uma falsa questão”

"Em Portugal, a bitola da rede ferroviária é a ibérica. Tal como no tráfego transfronteiriço, também no mercado interno a ferrovia tem uma quota marginal no transporte de mercadorias, de cerca de 6%. Verifica-se, por conseguinte, e uma vez mais, que não é a existência da bitola ibérica que constitui um entrave à competitividade da ferrovia."

Contraditório

É verdade, mas tal como no caso anterior isso não prova que se existissem bitolas diferentes isso não seria um problema. Mas é um facto que o problema da bitola se coloca nos tráfegos internacionais para lá de França e no futuro para Espanha, onde está prevista a desactivação de uma série de linhas em bitola ibérica, e não nos tráfegos nacionais.

3. Comboio “Autoeuropa”

Artigo “Ferrovia: a bitola é uma falsa questão”

"Este comboio circulou nas duas redes ferroviárias, a ibérica e a europeia, ou seja, entre Portugal e a fronteira hispano-francesa eram utilizados os nossos comboios (de bitola ibérica) e entre esta fronteira e o destino final, na Alemanha, eram utilizados os comboios da Deutsche Bahn. As mercadorias eram, por conseguinte, transbordadas na fronteira de uns comboios para os outros.

Este comboio funcionou bastante bem e de forma competitiva, não tendo vingado apenas e só por causa do boicote da ferrovia francesa. A diferença de bitola não constituiu qualquer problema, nem afectou a competitividade deste comboio."

Contraditório

O boicote da ferrovia francesa derivou essencialmente de atrasos causados pelos próprios franceses, e em menor escala, em dificultar a obtenção de um novo canal-horário em França quando se perdia o canal-horário previsto. Por isso é verdade que não foi por causa do tempo que se perdia na fronteira com o transbordo devido à diferença das bitolas que este comboio falhou. Mas isso não significa que não pudesse ter sucedido o mesmo por causa da diferença da bitola: o sistema funcionava com base no pressuposto de que os comboios de ambos os lados chegavam à fronteira simultaneamente para aí trocarem a mercadoria. Assim o atraso de um comboio em Portugal implicaria atrasos em França no outro comboio com o qual os horários deveriam estar coordenados, aumentando a probabilidade de haver atrasos e assim dar à ferrovia francesa pretextos para atrasar ainda mais os comboios, reduzindo a fiabilidade do sistema.

4. China-Europa

Artigo “Ferrovia: a bitola é uma falsa questão”

"Recentemente, têm começado a circular comboios de contentores entre a China e alguns países europeus (Alemanha, Inglaterra e Espanha). Estes comboios atravessam quatro bitolas diferentes e estão a funcionar, sem quaisquer problemas. O facto de terem de transbordar as mercadorias em quatro momentos não constitui qualquer entrave."

Contraditório

O facto de estes comboios funcionarem sem problemas e o transbordo das mercadorias não constituir um entrave não prova que o tempo e o custo desses transbordos não retirem competitividade ao transporte. O que prova é que essa perda de competitividade é inferior aos ganhos de competitividade face à via marítima devido ao menor tempo de transporte por ferrovia do que por via marítima entre a China e a Europa.

Demonstra-se assim que os argumentos apresentados não permitem fundamentar a conclusão de que a bitola é uma falsa questão. Além disso, o artigo “Ferrovia: a bitola é uma falsa questão” omite diversas questões importantes:

  • A gestão dos tráfegos e dos canais-horários. Como referido, se o transbordo se fizer sem armazenamento dos contentores nas estações de fronteira, é preciso coordenar o movimento dos comboios de ambos os lados da fronteira. Assim, se ocorrerem atrasos, estes propagam-se aos comboios da outra bitola, aumentando a probabilidade de perdas de canal-horário. Se o comboio da “Autoeuropa” se efectuava duas vezes por semana, com dezenas de comboios por dia (como seria necessário se se implementarem as políticas europeias de transferência modal que prevêem a transferência de 50% do tráfego da rodovia para a ferrovia até 2050, conforme se pode constatar na pag 10 (ponto 3) do Roteiro do Espaço Único Europeu dos Transportes), o sistema tornar-se-ia muito díficil de gerir, reduzindo a fiabilidade do sistema que assim perderia competitividade. Se os contentores fossem armazenados nas estações de fronteira durante dias à espera que os viessem buscar, como acontece nos portos, a ferrovia perderia uma das suas principais vantagens em relação ao transporte marítimo;
  • Se Portugal ficar com a bitola ibérica, que no longo prazo não existiria em mais lado nenhum ou apenas existiria em linhas suburbanas espanholas, dado que a rede de bitola ibérica espanhola será progressivamente desactivada, a reduzida dimensão do mercado do material circulante e de via em bitola ibérica reflectir-se-ia em custos acrescidos de todos estes equipamentos;
  • Nenhum operador não ibérico investiria em material circulante próprio apenas por causa do mercado português. Assim, as empresas de transporte ferroviário de mercadorias actuais (Medway e Takargo) ficariam com um monopólio do mercado português. A falta de concorrência que daí derivaria naturalmente originaria preços muito superiores aos de outros mercados com concorrência aberta, o que seria bom para essas empresas e mau para a competitividade da economia portuguesa.

Também há contradições na prática e na argumentação:

  • As redes ferroviárias portuguesa e a convencional em Espanha têm a mesma bitola, por isso os vagons de mercadorias podem circular em ambas. Mas as locomotivas em geral não podem circular em ambas as redes devido ao facto de a rede espanhola não estar electrificada junto à fronteira portuguesa e os sistemas de sinalização e controle de velocidade serem diferentes nas duas redes. Por isso, a própria empresa Medway investiu recentemente em locomotivas interoperáveis (a diesel e com os sistemas de sinalização e controle de velocidade de ambas as redes), capazes de circular tanto na rede portuguesa como na rede convencional espanhola, evitando assim a troca de locomotivas na fronteira. Ora se existisse diferença de bitola, nem as locomotivas nem o material rebocado (de eixos fixos) poderia circular nas duas redes e ao problema da troca das locomotivas acrescentar-se-ia o transbordo da carga na fronteira. Mas segundo o autor do artigo a bitola não é um problema, por isso não se percebe porque investiu a sua empresa para resolver apenas parte de um problema que o próprio diz nem sequer existir;
  • No artigo “Ferrovia: a bitola é uma falsa questão” afirma-se “importa recordar que têm vindo a ser desenvolvidas soluções de eixos variáveis, que já estão a ser testados e que, uma vez instaladas nas locomotivas e vagões, vão permitir que os comboios circulem em diferentes bitolas”. Em primeiro lugar não se percebe porque é que alguém investe no desenvolvimento de tecnologias para resolver problemas que supostamente não existem. Em segundo lugar estes são mais caros que os eixos fixos normalmente utilizados, encarecendo o material rebocado, e consequentemente aumentando os custos e retirando competitividade ao transporte ferroviário de mercadorias. Em terceiro lugar, as próprias empresas que estão a desenvolver o sistema não o consideram uma solução definitiva mas apenas uma tecnologia para facilitar a fase de transição enquanto as duas bitolas coexistirem no mesmo país (ver pág 2).

Em cima de tudo isto, refira-se que este problema já foi estudado pela União Europeia, sendo as conclusões claríssimas, como se refere no documento White Paper: European Transport Policy for 2010: Time to Decide, que se cita (pág. 30): “No railway system can be fully competitive unless all matters relating to the removal of technical barriers to trade in trains and to their interoperability — that is, their ability to run on any stretch of the network — are resolved first”, cuja tradução para português é “Nenhum sistema ferroviário pode ser totalmente competitivo sem que todas as barreiras técnicas à circulação dos comboios e à sua interoperabilidade — isto é, a capacidade de circularem em qualquer parte da rede — sejam removidos”. Acresce que a Espanha, que tem cerca de 50 anos de experiência com sistemas de transbordo nas ligações ferroviárias a França por causa da bitola, investe todos os anos cerca de quatro mil milhões de euros do Orçamento do Estado (ver pag 11), complementados com avultados Fundos Europeus, em novas linhas de bitola europeia aptas para tráfego de passageiros e mercadorias, para se ver livre de um problema que, de acordo com o artigo “Ferrovia: a bitola é uma falsa questão”, nunca o foi nem é. Ora, se o problema da diferença de bitolas é uma falsa questão, porque supostamente se resolve facilmente com transbordos de acordo com o artigo, será possível que a UE e a Espanha, que tem 50 anos de experiência com estes sistemas, ainda não tenham dado por isso?

Pelas razões descritas, a questão da diferença de bitola entre a rede ferroviária portuguesa e as redes ferroviárias de quase toda a UE é crucial para a competitividade do transporte internacional de mercadorias com origem/destino em Portugal.

Como,

  • A rodovia tende a perder competitividade no transporte de mercadorias de médio e longo curso por razões ambientais e energéticas, tendo a UE definido objectivos de transferência modal da rodovia para a ferrovia e o transporte marítimo, como já referido;
  • A via marítima não ser uma alternativa competitiva às vias terrestres no comércio de Portugal com a UE (que actualmente é 70% de todo o nosso comércio externo), 80% do qual, em valor, se faz por rodovia, para numerosos sectores de actividade, como se demonstra no Inquérito sobre transporte internacional de mercadorias efectuado pela CIP ao tecido empresarial do nosso país (ver o Anexo 2 do Documento de Reflexão da CIP intitulado “O conceito de reindustrialização, indústria 4.0 e política industrial para o século XXI);
  • O comércio internacional é uma fonte de riqueza e progresso das Nações, permitindo tirar partido das vantagens da globalização (veja-se a situação económica de países isolados, como a Coreia do Norte ou, em menor grau, a Albânia),

, a diferença de bitola ferroviária em relação ao resto da Europa é uma questão importantíssima, porque é uma ameaça à competitividade futura da economia portuguesa.

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