Somos todos assassinos?

Amanhã, ganhe uns segundos na vida ao pensar nesses milhões de vítimas e nas profundezas da espécie humana.

O Holocausto, cujo Dia Internacional da Memória se comemora amanhã, foi muito provavelmente o evento mais sinistro da história da Humanidade. 

Embora os números do Holocausto sejam sempre motivo de controvérsia, não restam dúvidas que foram milhões e milhões os judeus assassinados, a que acresceram os ciganos, os homossexuais, os comunistas, os doentes mentais e, também, os prisioneiros de guerra soviéticos. Mortos tão-somente e exactamente por serem judeus, ciganos, homossexuais, doentes mentais, comunistas ou prisioneiros de guerra soviéticos. Milhões que, pela sua dimensão e horror, quase perdem o significado por passarem a ser uma abstracção, algo em que não conseguimos acreditar verdadeiramente.

Para muitos, o Holocausto confunde-se com as imagens dos campos de concentração ou de extermínio mais conhecidos como Auschwitz-Birkenau e Bergen-Belsen ou outros, verdadeiras fábricas da morte geridas pelo Estado alemão. Mas, pese embora a forma organizada e sistemática como foi sendo construída a máquina de eliminação dos elementos que não mereciam fazer parte do Reich, por serem considerados racialmente indesejáveis — de que os judeus eram o paradigma —, a verdade é que o Holocausto não foi meramente, se assim se pode dizer, o sinistro fruto da existência e do funcionamento de um Estado totalitário nem se concretizou só nos campos de concentração.

Compreender como foi possível acontecer o inominável é uma tarefa para os historiadores mas também para cada um de nós enquanto parcelas da Humanidade, já que todos somos vítimas e carrascos. Quem leu — e toda a gente devia ler — o texto “História e Holocausto – Estudar o passado, conhecer os assassinos”, de Irene Flunser Pimentel, publicado no PÚBLICO no passado dia 14, ficou a conhecer os meandros percorridos pelos historiadores para nos ajudarem a compreender e explicar o que se passou: desde a demonização dos principais responsáveis até à banalidade do mal, obra de homens vulgares, da valorização do poder e da vontade anti-semita de Hitler até à cumplicidade das elites alemãs ou, ainda, desde a valorização da ideologia nazi como motor dos acontecimentos até ao entendimento de que as circunstâncias terão sido determinantes na passagem do normal para o patológico nos comportamentos de muitos dos executantes, passando pelo notável conceito da “obediência por antecipação” para explicar o comportamento de muitos nazis a nível local que fizeram (mataram) muito mais do que lhes era exigido ou solicitado, há muitas obras que nos iluminam na busca da compreensão desse período de negrume.

Parece claro que não foram só nazis que permitiram e levaram a cabo o Holocausto, embora, naturalmente, fossem os seus grandes teóricos e impulsionadores. Seguramente que sem Hitler e o anti-semitismo da ideologia nazi não existiria o Holocausto, mas o Holocausto não teria também existido só com Hitler e os militantes nazis.

O Holocausto começou muito antes da II Guerra Mundial e foi fruto do trabalho e da activa colaboração de milhares e milhares de alemães muito antes do começo da II Guerra Mundial. Cidadãos normais e comuns, pais e mães de família, socialmente integrados e cumpridores dos seus deveres e não apenas cidadãos comprometidos com o nazismo e que ocupavam lugares oficiais ou com responsabilidades políticas e sociais. Cidadãos que, encorajados pela propaganda e pelas leis anti-semitas, mas de uma forma voluntária e activa, foram ao longo dos anos afastando os judeus da vida pública, proibindo-lhes a frequência dos mais diversos locais, desde as praias, universidades ou jardins, excluindo-os das mais diversas profissões como médicos, advogados ou juízes e muitas outras, boicotando o seu trabalho e comércio, desprezando-os e vilipendiando-os até perderem a sua humanidade. Os judeus eram para muita e muita gente comum, na Alemanha nazi, seres inferiores e repugnantes que podiam — como foram — ser segregados, subjugados e eliminados sem problemas éticos, morais ou religiosos.

Amanhã, ganhe uns segundos na vida ao pensar nesses milhões de vítimas e, também, nas profundezas da espécie humana, que permitiram que pessoas comuns se transformassem em autores ou cúmplices de um dos eventos mais sinistros da história da Humanidade.

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