Numa Lisboa com cada vez mais novas centralidades, as lojas centenárias resistem na Baixa e no Chiado

Há negócios que sobreviveram a "crises, guerras, tremores de terra, mudanças tecnológicas, de hábitos". O segredo? Estar na Baixa e no Chiado, dizem os proprietários.

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O Hospital das Bonecas, na Praca da Figueira, funciona desde 1830 gmw guilherme marques

Quando em 2014, José António Rousseau foi surpreendido por algumas conclusões da sua tese de mestrado que estudava a Resiliência do retalho independente centenário de Lisboa: os 47 negócios - que tinham ultrapassado a barreira dos 100 anos - localizavam-se todos nas zonas da Baixa e do Chiado. "Se estas lojas estivessem localizadas fora da baixa, provavelmente já não existiam", nota o autor deste estudo que o aprofundou agora na tese de doutoramento e a passou para o livro Resiliência do Comércio – As lojas centenárias de Lisboa.

E foi esse o factor que os proprietários mais apontaram como a razão de os negócios terem sobrevivido por tantos anos, explica o consultor em distribuição, que foi durante largos anos director-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED).

Foi precisamente este cargo ligado à distribuição moderna que o fez olhar para o retalho tradicional, pouco estudado, e lembrar-se de que o avô Pereira tinha tido uma mercearia em Beja, e que a infância tinha sido passada a brincar atrás do balcão.

Estudou 47 lojas, centenárias em Lisboa, independentes, que não pertencem nenhuma cadeia (exclui à partida empresas da área da restauração e as que pertencem hoje a cadeias de retalho, como a Bertrand e a Casa Batalha), que sobreviveram a "crises, guerras, tremores de terra, mudanças tecnológicas, de hábitos", sublinha o também professor universitário.

Da amostra, a loja mais antiga é a Farmácia Azevedos de 1775, no Rossio, e a mais recente é a retrosaria Bijou, na rua da Conceição, de 1915. Mas há também oculistas, lojas de moda, uma barbearia, a manteigaria Silva, ourivesarias, livrarias, a Casa Campião, a Casa das Bandeiras, Hospital de Bonecas ou a Caza das Vellas Loreto.

Ao contrário do que se poderia imaginar, a grande maioria destas lojas não se manteve na mesma família. Só um quarto da amostra foi passando de pais para filho. O resto foi mudando de titulares ao longo dos anos.

A par da localização, é a especialização que mantém estes negócios hoje de pé, acredita José António Rousseau. “Os produtos que elas vendem, só elas é que os têm”, nota. Como a Casa das Bonecas. Só ali se sabem os de reparação de uma boneca. 

Nos três anos decorridos entre a apresentação da sua tese de mestrado e este livro, o professor universitário diz que mudou pouca coisa. As lojas "estão exactamente iguais", com uma diferença: são hoje mais visitadas por turistas, nota. 

Além disso, a amostra encolheu: pelo menos duas lojas já fecharam. A Loja Sol, que vendia electrodomésticos, fechou em 2015, assim como a J. Nunes Corrêa Alfaiates, que ocupava, desde 1856, o 250 da rua Augusta. Hoje, aquele número dá lugar a uma loja de lingerie feminina de uma cadeia internacional. O que é, aliás, recorrente, já que vários retalhistas internacionais foram ocupando os espaços da Baixa que lojas históricas iam deixando.

Ainda no segmento de moda, das que foram incluídas na amostra sobrevivem a Camisaria Pitta, na rua Augusta, e a Lourenço & Santos, na praça dos Restauradores. Quanto à protecção destas lojas históricas, com tradição, José António Rousseau admite que tanto as autarquias como o governo estão a começar a criar "alguma legislação que visa dar alguma protecção às chamadas lojas com tradição". A câmara de Lisboa tem o programa Lojas com História, onde por iniciativa dos comerciantes, proprietários ou sociedade civil, os estabelecimentos poderão candidatar-se à atribuição desta distinção, que prevê apoio financeiro, nomeadamente no âmbito fiscal.

Também o Orçamento de Estado para 2018 contempla duas medidas de apoio: as lojas com história, reconhecidas pelos municípios, ficarão isentas do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e poderão beneficiar da dedução das despesas de conservação e manutenção, que passarão a ser consideradas em 110% no lucro tributário apurado.

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