Dentro de um ano haverá em Xabregas um “centro de referência” para a arqueologia náutica?

Direcção-Geral do Património responde aos que a acusam de faltar às suas responsabilidades no que toca ao antigo Centro de Arqueologia Náutica e Subaquática – não há bens em risco, o que há é uma mudança complicada. E, constatou o PÚBLICO, incógnitas na conservação de alguns materiais.

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A situação das reservas da arqueologia náutica e subaquática instaladas há dez anos no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL) continua a opor arqueólogos de universidades, associações, museus e centros de investigação ao Ministério da Cultura e à sua Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). Pelo meio há um pedido do PCP para que o ministro vá explicar aos deputados o que se passa com os bens depositados naquele armazém nos arredores de Lisboa e uma carta aberta dirigida ao mesmo Luís Filipe Castro Mendes assinada por 20 arqueólogos que em Portugal e lá fora se ocupam da história que ficou debaixo de água.

Dizem os arqueólogos que o Estado deixou arrastar ao longo de dez anos uma situação que devia ser “provisória” e que lhe custou mais de um milhão de euros (o valor em rendas não andará longe dos 1,4 milhões), que depois agiu tarde e a más horas quando foi informado de que tinha de abandonar os 3200 metros quadrados que ocupava no MARL, e que continua a não perceber a importância do património que tem em mãos nas instalações de Loures, deixando em risco bens que tem por missão proteger nesta fase em que a casa da arqueologia náutica e subaquática está em obras e se prepara a mudança para uma nova, na antiga Fábrica de Tabacos de Xabregas.

A DGPC defende-se, garantindo que nada está ameaçado e dispôs-se a esclarecer jornalistas e arqueólogos, caso raro numa instituição que tantas vezes se remete ao silêncio ou opta por declarações sumárias, começando por enviar para as redacções, no final de Setembro, um comunicado em que, em 15 pontos, reagia a declarações feitas ao PÚBLICO por José Arnaud, presidente da Associação de Arqueólogos Portugueses (AAP), depois de uma visita ao MARL. Agora, abriu as portas do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS) – para efeitos práticos, continuamos a usar esta designação porque o meio do património o faz, embora na orgânica da DGPC ele não exista desde a extinção do Instituto Português de Arqueologia, em 2007 – para mostrar, diz o seu subdirector, que “não há nada em risco de se perder”, o que há é uma “mudança extremamente complexa em termos logísticos” e que “obriga à imposição de alguns constrangimentos”.

“As pessoas têm de compreender isto e pensar que é uma mudança para melhor. Nós começámos a  tratar da saída [do MARL] em Junho e neste espaço de tempo já temos um novo local [para o CNANS], um projecto para esse local e vamos lançar agora o concurso para a obra”, garante João Carlos Santos. O que os arqueólogos que têm vindo a falar com o PÚBLICO não compreendem é por que é que não se agiu atempadamente, minimizando os ditos constrangimentos, quando a administração central sabia, desde Dezembro de 2016, que a sociedade a que o MARL pertence queria pôr fim ao contrato de arrendamento. Por que razão não começou a DGPC a trabalhar logo numa alternativa, já que a de Xabregas parece ter surgido de imediato mal pegou no assunto?

O CNANS tem agora um “calendário apertado” para a mudança, reconhece João Carlos Santos, mas “executável”: concurso para a empreitada até meados de Outubro, obras concluídas até ao fim do primeiro semestre de 2018 e uma previsão de três meses para a mudança. Contas feitas, a casa nova deverá estar pronta dentro de um ano e custará 1,4 milhões de euros (número avançado pelo ministro da Cultura).

Um laboratório embrulhado

É fácil adivinhar os constrangimentos a que se refere o subdirector do Património quando se visita hoje o CNANS. A DGPC já libertou metade do espaço do armazém que ocupou na última década – ali estavam também o seu arquivo-morto e o depósito de objectos para vender nas lojas dos seus museus e monumentos –, mas a reserva arqueológica continua no lugar onde estava, só que agora parece, em parte, embrulhada e pronta a levar, como uma refeição num take-away.

O laboratório de conservação e restauro, que esteve mais de um ano sem técnico, está todo encaixotado e envolto em plásticos; os 30 tanques de imersão onde repousam madeiras de embarcações naufragadas ao largo da costa portuguesa, de Norte a Sul, algumas com mais de 400 anos, estão no meio de uma estrutura de andaimes erguida para que os operários da construção que trabalham no armazém possam aceder à cobertura e melhorar os sistemas de iluminação e de detecção de incêndios; e há porta-paletes e empilhadores de um lado para o outro, a pôr em camiões materiais do arquivo e das lojas.

A parede que foi derrubada para instalar um portão de carga já está arranjada, mas isso não impede que tenhamos a sensação de estar no meio de uma obra – andaimes, barulho, pó, caixas e caixotes empilhados.

O subdirector do Património reconhece que esta não é a situação ideal para se fazer uma mudança, mas rejeita qualquer acusação de irresponsabilidade: “O armazém esteve sem portão dois dias, não mais do que dois dias, mas teve sempre, como agora, segurança 24 horas. E apesar de isto ser uma obra e de ter pessoas exteriores à DGPC, nada está abandonado. Ninguém entra aqui sem ser identificado e ninguém externo se vai pôr a abrir caixotes ou a mexer nas coisas.”

Não são os furtos que mais preocupam os arqueólogos, mas a forma como as obras estão a afectar os materiais ali guardados nos tanques de imersão e impregnação – duas fases distintas do processo de tratamento, a primeira de conservação preventiva, a segunda já curativa e indispensável ao processo de secagem que levará a que os materiais possam ser expostos fora de água.

Por baixo da estrutura de andaimes que só deverá ser retirada no final de Novembro (entretanto deverá ser erguida uma divisória de metal para separar o CNANS da empresa que virá ocupar a outra parte do armazém) estão 30 tanques de imersão que deviam ter água corrente, mas não têm. Têm, sim, coberturas de plástico individuais e uma adicional, no andaime, mas que só foi colocada depois de este ter sido montado, o que não impediu que as águas se sujassem.

Conservação complexa

Quando retiradas do fundo do mar, onde estiveram durante séculos, nalguns casos milénios, as madeiras não podem secar ao ar naturalmente, explica o único técnico de conservação e restauro, José António Gonçalves, o último a integrar a equipa de cinco elementos do CNANS (chegou em Julho e juntou-se a dois arqueólogos, Pedro Barros e Adolfo Martins). Daí serem colocadas em tanques de imersão até que possam ser tratadas convenientemente. Nesses tanques a água deve ser corrente para que nela não se acumulem sujidades e organismos que degradem a madeira.

“É difícil estimar que tipo de degradação a falta de água corrente vai causar nestas madeiras. Mas terá certamente consequências o facto de ela estar desligada durante dois meses”, diz.

O que José António Gonçalves e o técnico operacional que o assiste vão fazer é tentar minimizar o impacto das águas paradas nestes materiais: “Vamos fazer a monitorização visual de todos os tanques e mudar a água sempre que possível.” Mas com os andaimes montados não será tarefa fácil. “Mudar a água a um tanque leva um dia, é um processo demorado.” Um dia para cada um dos 30 tanques equivale a dizer que trocar a água a todos apenas uma vez demora mais de um mês.

“Não posso prever hoje que efeito terá nos materiais. Não posso”, repete o técnico. Quem será, então, responsabilizado se a obra no MARL conduzir a perdas patrimoniais? Mesmo que o técnico garanta que é impossível determinar hoje se haverá ou não danos, o subdirector-geral recusa-se a colocar essa possibilidade: “Não pusemos sequer esse cenário porque não vai haver nenhuma perda patrimonial aqui. Não vai.”

Entre as jóias do CNANS estão seis pirogas com mais de dois mil anos que foram resgatadas do Rio Lima e que estão entre as embarcações mais antigas do mundo. Duas foram intervencionadas em Cartagena (Espanha), uma foi deixada a secar livremente (processo que acelerou a sua degradação mas que trouxe informação relevante) e três estão em tratamento desde a década de 1990. Estas peças são as que requerem mais cuidados e estão numa sala à parte onde tudo está precisamente como estava antes de começarem as obras.

“É preciso dizer, para que fique bem claro, que não se passou nada com as peças mais importantes. Não houve nenhuma alteração. Estão rigorosamente protegidas”, assegura o subdirector-geral, respondendo aos arqueólogos José Arnaud e Luís Raposo, que tinham manifestado ao PÚBLICO a sua preocupação em relação a estas e outras peças.

Nas grandes caixas desta sala especial, para além das pirogas – há uma com um banquinho e outra com uma proa em forma de ave – há também madeiras da Ria de Aveiro que “terão pertencido a um exemplar que é o mais próximo que temos em território português de uma caravela dos Descobrimentos”, diz o também arqueólogo Adolfo Martins. “Se estivessem ao ar apodreciam.”

Nos tanques de impregnação onde estão as madeiras do século XVI de Aveiro faz-se a dita conservação curativa, explica José António Gonçalves, recorrendo ao Polietilenoglicol (PEG), um químico que também é usado em shampôs e pastas de dentes.

“O PEG serve para consolidar as paredes da estrutura celular da madeira e para substituir a matéria perdida” –um processo que era feito pela água quando as peças estavam em contexto arqueológico, explica. Depois de consolidadas com PEG as madeiras já podem ser sujeitas à liofilização, um processo de desidratação que decorre numa câmara onde são primeiro congeladas e depois aquecidas em vácuo para sublimar a água sem que esta passe pela fase líquida. “A liofilização é mais célere (dias em vez de meses) do que a secagem à pressão atmosférica normal.”

No CNANS não há uma liofilizadora e comprar uma, adverte o conservador-restaurador, requer um grande investimento. “Uma pequena custa 90 mil euros, mas se quisermos comprar uma onde caiba uma piroga com sete ou oito metros, por exemplo, já custa meio milhão.”

Comprar este tipo de equipamento, no entanto, permitirá à DGPC cumprir melhor a sua missão no que toca à náutica e subaquática a três níveis, reconhece o subdirector-geral: “Acolher espólio, tratá-lo e devolvê-lo às comunidades a que pertence. O que for de excepção ficará nas colecções nacionais [no Museu Nacional de Arqueologia]. Com esta mudança queremos aproveitar para devolver muito espólio que estava à nossa guarda aos municípios.”

Para já, nada está ainda decidido sobre o que adquirir nem quando. “Este equipamento não será comprado na fase de empreitada. Primeiro precisamos de analisar o que têm os outros laboratórios europeus e ver o que compensa comprar em função das nossas necessidades e pensando na prestação de serviços a outros. Tem de haver uma lógica de complementaridade.”

Na mudança que deverá estar concluída até Outubro de 2018 o mais sensível será a transferência dos grandes tanques de impregnação onde estão as madeiras de Aveiro. “Estão ligados a um sistema de circulação de águas fixo e a temperatura lá dentro tem de ser constante”, diz o conservador-restaurador. As madeiras terão de ser retiradas dos tanques e embaladas para transporte porque não podem viajar dentro do líquido. Para dificultar algo já de si difícil, “os tratamentos não podem estar suspensos mais do que 48 horas porque a partir daí o PEG pode cristalizar e causar danos físicos à madeira”.

Um “centro de referência”

A equipa do CNANS tem hoje cinco elementos, mais dois do que em Maio, quando o PÚBLICO fez um retrato da arqueologia náutica e subaquática na DGPC. Agora, os seus arqueólogos já podem mergulhar, contando que se aluguem embarcações ou que apanhem boleia de alguém – os sete barcos do antigo centro continuam impedidos de ir para a água (faltam licenças, vistorias, equipamento, manutenção) e quatro deles irão mesmo para abate.

Diz João Carlos Santos que, nas novas instalações, em Xabregas, a equipa e os meios deverão ser reforçados, até porque a DGPC pretende ali acolher investigadores e ter um espaço onde se possam fazer conferências e pequenas exposições capazes de “devolver às pessoas o trabalho que o Estado faz nesta área”. E isto sem esquecer a aposta na conservação e restauro. A ideia, diz, é fazer uma candidatura ao Fundo EEA Grants (mecanismo financeiro do Espaço Económico Europeu  destinado a reduzir as disparidades sociais e económicas na Europa e a reforçar a cooperação entre os países) e passar a integrar uma rede europeia de laboratórios semelhantes ao que Portugal usou em Cartagena.

“Já disse e repito, o novo espaço da arqueologia náutica e subaquática será um centro com condições de referência nacional e internacional”, garante ao PÚBLICO. E as reservas poderão vir a ser visitáveis, como já acontece em alguns museus portugueses. A nova casa do CNANS permitirá ainda, acrescenta, requalificar um imóvel do Estado “muito interessante” que estava até aqui desocupado e a precisar de intervenção. Um imóvel público onde, apesar de tudo, a lei determina que a DGPC, um organismo da administração central, pague renda – cerca de oito mil euros por mês.

“Os arqueólogos protestam, mas nós estamos a arrumar a casa. Há aqui muito material arqueológico que nem sequer devia estar aqui. O Laboratório de Arqueociências [Larq], por exemplo, não devia ter aqui nada. Estamos neste momento a fazer obras num edifício na Ajuda para lhes dar instalações condignas. E com Xabregas vamos resolver um problema que se arrasta há dez anos. Se somos perfeitos? Não, não somos, mas não estamos parados.”

O tempo dirá se os prazos de execução da mudança são cumpridos e se o “centro de referência” para a arqueologia subaquática que deverá nascer em Xabregas é mais do que um projecto bem-intencionado.

Notícia corrigida às 13h15: nos grandes tanques de impregnação estão madeiras do século XVI e não as pirogas do Lima.

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