Câmara do Porto alega fraude e tenta anular compra dos terrenos da Selminho

Município liderado por Rui Moreira reclama no tribunal posse de terrenos na Arrábida registados em nome da família de Rui Moreira. Selminho adquiriu-os na sequência de uma alegada apropriação fraudulenta.

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A escritura por usucapião dos terrenos municipais terá sido feita de forma fraudulenta Adriano Miranda

A Câmara Municipal do Porto (CMP) liderada por Rui Moreira avançou com uma acção no tribunal Cível do Porto para pedir a declaração de nulidade dos actos judiciais que determinaram a posse de um terreno na zona da Arrábida pela Selminho, empresa detida pela família de Rui Moreira. Numa “Acção Declarativa de Simples Apreciação” entregue em Junho deste ano, o município pede ao tribunal que declare não só “a nulidade da escritura” que transferiu por usucapião 1661 metros quadrados registados no domínio municipal para a posse de Maria Irene de Almeida Pereira e do seu marido João Baptista Ferreira como a nulidade das “transmissões subsequentes”, ou seja, o contrato de compra e venda celebrado em 31 de Julho de 2001 entre este casal e a Selminho. Para fundamentar o pedido, o município considera que a escritura por usucapião dos terrenos municipais foi feita de forma “fraudulenta”, tendo por base a prestação de “falsas declarações”. Ou seja, a família Moreira terá adquirido um terreno registado por particulares de forma ilegal.

Com o recurso à Justiça, a Câmara do Porto segue as reclamações dos partidos da oposição, que à esquerda ou à direita, exigiram uma batalha para garantir ao município a plena posse dos terrenos registados em seu nome e que nunca foram objecto de qualquer operação de venda. Essa foi igualmente a tese defendida pelos serviços jurídicos da autarquia. Depois de terem verificado, através de um esclarecimento da Direcção Municipal da Gestão do Património, que a Selminho reclamava a posse de um terreno registado em nome do município, os serviços municipais pediram aos juristas Pedro Alhinho e João Faria um parecer para decidir que caminho trilhar. Esse parecer foi entregue em Fevereiro deste ano e recomendava que a autarquia avançasse para os tribunais com uma “Acção Declarativa de Simples Apreciação”.

No seguimento do parecer, e após o PÚBLICO ter revelado a existência de “informações” datadas de Outubro e de Dezembro do ano passado nas quais os técnicos municipais afirmavam que os terrenos da Selminho estavam registados em nome da câmara, os serviços jurídicos pediram aos mesmos juristas para avançarem para tribunal. Nessa altura, porém, a posição do director dos serviços jurídicos, José Paulo Correia de Matos, era menos taxativa do que a versão final da acção. “Nada habilita a CMP a considerar nula a aquisição mencionada [da Selminho], enquanto não houver sentença judicial que dirima a existência daqueles direitos de propriedade conflituantes sobre o mesmo imóvel”, dizia o departamento jurídico numa nota ao PÚBLICO. Na acção agora interposta, a câmara reclama pura e simplesmente a posse dos terrenos.

Uma explicação para esta maior determinação pode-se encontrar na investigação feita pelos advogados indicados pela câmara. Como o PÚBLICO escrevera em Maio, a escritura de registo do terreno por usucapião, feita na Conservatória de Montalegre, sustentou-se em pressupostos pouco convencionais. Pelos seus termos, Maria Irene de Almeida Pereira e João Baptista Ferreira davam conta de terem adquirido o terreno com 2260 metros quadrados em 1970 a Álvaro Nunes Pereira. Nesse registo, ocorrido na vila transmontana em 29 de Março de 2001, os outorgantes da escritura diziam que a compra foi “verbal” e que não tinham “qualquer título onde resulte pertencer-lhes o direito de propriedade do prédio”. Mas, como já tinham passado 30 anos desse essa suposta posse, como garantiram ter sempre “usado e fruído o prédio”, e como lá tinham “construído um muro” e pago “todas as contribuições”, explorando-o “tendo em consciência de serem os seus únicos donos”, puderam “sob sua inteira responsabilidade” reclamar o “direito de propriedade sob o prédio por usucapião”.

Uma história de contradições

Não é verdade que Maria Irene de Almeida Pereira e João Baptista Ferreira, agora réus no processo, tivessem pago “todas as contribuições” sobre o imóvel. O prédio da Arrábida apenas foi registado nas Finanças em 1999 e só em Janeiro de 2001 receberia o número de matriz predial 3956, sendo-lhe atribuído um valor patrimonial de 247.700 euros. Mas o trabalho dos advogados foi mais longe e descobriu que o suposto vendedor do imóvel em 1970 era, nada mais, nada menos do que o pai de Maria Irene e sogro de João Baptista Ferreira. “Não identificaram o vendedor como pai e sogro, não declararam o preço de compra e venda, a morada do vendedor e se o mesmo é vivo ou morto”, lê-se nos autos. Mais: entre 1970 e 1999 “sabiam não ter procedido ao pagamento de quaisquer impostos” e não foram eles que construíram o muro – que existe há muitas décadas.

Para adensar o mistério, a acção vai mais além e questiona a possibilidade de ter havido alguma transacção do imóvel, ainda que verbal, em 1970. Como constatou uma investigação do PÚBLICO, Álvaro Nunes Pereira trabalhara depois de 1957 na construção da ponte da Arrábida para o empreiteiro J. P. Zagallo, que lhe terá “facultado alojamento no local” – os terrenos em disputa, note-se, tinham sido expropriados em 1950 para permitir o avanço da obra. Ou seja, nada prova que Álvaro Pereira fosse dono da casa onde viveu e ainda menos do terreno adjacente. Por outro lado, em 1970 os réus tinham, respectivamente, 16 e 21 anos, e obtiveram a sua emancipação quando se casaram em Fevereiro desse ano. Ora, notam os causídicos escolhidos pela Câmara, é “inverosímil que menores ou recém-emancipados procedessem nos anos 70 do século passado a investimentos imobiliários de semelhante jaez”. O que os leva à conclusão essencial: “É fraudulenta a inscrição do prédio na matriz e no registo por assente em falsas declarações”.

Esta alegação é essencial para a discussão que está em causa. Porque os advogados admitem que possa haver transacções por usucapião no património sob o domínio privado municipal - há também 40 metros quadrados do domínio público registados pela Selminho onde essas transacções por usucapião são ilegais. Mas, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça publicada já este ano exclui essa possibilidade em casos de apropriação alegadamente fraudulenta. Um acórdão do STJ do ano passado refere: “Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção” da posse do mesmo, “devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras do direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções”.

Para lá da alegação de práticas eventualmente fraudulentas, os advogados da autarquia tentam provar que “há mais de 20, 50 e 65 anos que o autor se manteve na propriedade e na posse do imóvel, agindo publicamente como proprietário”, nomeadamente através da sua “limpeza periódica”. As datas referidas apontam para a primeira expropriação, em 1950, feita de forma amigável através do pagamento de 70 contos ou para as anexações e desanexações realizadas no princípio da década de 1960 para a realização do Plano de Urbanização do Campo Alegre ou no final dos anos de 1980 com a criação do pólo universitário do Campo Alegre.

A dúvida arrasta então o processo para a sua actual fase. Em Junho, a câmara avança para os tribunais e o litígio espera agora pela contestação dos réus. Em Agosto, os advogados da Selminho e de Maria Irene e João Baptista Ferreira (Nuno Carvalhinha, com quem o PÚBLICO tentou falar) apresentaram um requerimento ao tribunal no qual pedem um adiamento de um mês para apresentarem a sua contestação, tendo em conta o “conjunto de circunstâncias que, do ponto de vista fático e de direito, dificultam de forma extraordinária e anormal a organização e preparação das suas defesas”. Os advogados da autarquia responderam que “os factos articulados” são “todos pessoais”, não vislumbrando por isso “o que, de concreto, possa impedir ou dificultar a organização da defesa quanto a factos pessoais”. Ainda assim, o tribunal deu razão aos réus. E o processo volta a acelerar lá para Outubro. Depois das eleições autárquicas do primeiro dia desse mês.

O PÚBLICO tentou obter respostas a estas questões junto da Câmara do Porto e de Rui Moreira. O Gabinete de Comunicação da autarquia avisa que, tendo em consideração o actual período eleitoral “se irá coibir de qualquer comentário adicional sobre tais matérias, claramente alvo de disputa e discurso políticos”.

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