Timor-Leste, um sopro de liberdade

Na manhã da sexta-feira 11 de Outubro de 1996, a “bênção do Nobel” à causa timorense ficaria para a história como um justo e decisivo sopro de liberdade.

Foi uma sexta-feira de alegria, com a contenção que a prudência aconselhava: cinco longos anos após o massacre de Santa Cruz, o comité norueguês anunciou, em 11 de Outubro de 1996, a atribuição do Nobel da Paz a duas destacadas figuras timorenses, o bispo Ximenes Belo e o resistente e diplomata José Ramos-Horta. Era um sopro de liberdade, e também de esperança, numa causa que muitos davam como perdida mas que, graças ao empenho e persistência de outros, permanecia viva entre nós. Nesse dia, na azáfama dos acontecimentos maiores, foram vários os jornalistas mobilizados para o tema. Para a capa, foi pedida uma ilustração a Henrique Cayatte, um dos fundadores do jornal e autor do primeiro design gráfico do PÚBLICO. E tal ilustração condensa tudo: Ximenes Belo e Ramos-Horta, ambos com um enigmático aceno e, por detrás deles, um vulto que pela silhueta facilmente se reconhecia: Xanana Gusmão. “A bênção do Nobel” era o título da manchete, tendo por antetítulo a interpretação do que sucedera: “Comité norueguês reconhece legitimidade à causa timorense.” Ramos-Horta alvitrava: “Penso que Timor-Leste pode ser independente antes do fim do século”. Errou por pouco: sê-lo-ia em Maio de 2002.

Timor-Leste foi dos temas que mais acompanharam a vida do PÚBLICO enquanto jornal. Para quem não conhecer a história (há um livro que a sintetiza bem, Timor Os Anos da Resistência, de Maria Ângela Carrascalão, que trabalhou no Centro de Documentação do PÚBLICO; ed. Mensagem, 2002), recorde-se que Timor é uma ilha dividida em duas partes: a ocidental, antiga colónia holandesa, pertencente à Indonésia; e a oriental, continuando colónia portuguesa até 1974, não chegou a concretizar um normal processo de descolonização porque em 7 de Dezembro de 1975, num momento de radicalização interna, foi invadida pelas forças militares indonésias por terra, mar e ar. E ocupada.

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Mais de duas semanas passadas sobre a ocupação, no dia de Natal de 1975, o Conselho de Segurança da ONU tomou uma posição inequívoca. E aprovou, por unanimidade, a resolução 3485, onde reconhecia o direito inalienável do povo de Timor à autodeterminação, liberdade e independência, lamentando a intervenção militar das Forças Armadas indonésias e apelando à sua retirada. O que aconteceu depois? Nada, ou pouco mais do que isso. A resistência, com indesmentível apoio popular, ia mantendo acesa a esperança numa futura independência, mas a Indonésia, pela força, conservava o seu domínio. Em Portugal, o movimento tinha eco, mas nos meios políticos já muitos davam Timor como um caso perdido. Quando o PÚBLICO se estreou nas bancas, em 1990, era esse o estado das coisas. Até que, de visita a Portugal, João Paulo II falou. “Papa rompe silêncio sobre Timor”, titulava o jornal em 12/5/91. A viajar de Lisboa para os Açores, disse: “Todos os dias rezo, em especial, por essa ilha.” Meses depois, não seria só ele a rezar. Às oito horas da manhã do dia 12 de Novembro, o cemitério de Santa Cruz, em Díli, foi palco de um morticínio perpetrado pelas forças indonésias. As imagens, captadas pelo jornalista britânico Max Stahl e difundidas por jornais e televisões, chocaram o mundo. “Portugal de luto por Timor”, titulava o PÚBLICO de 19/11/91, adiantando que as “imagens televisivas do massacre de Díli põem país em estado de choque”. Foi este o verdadeiro momento de viragem, até para a atribuição futura do Nobel. No PÚBLICO de 23/11/91, nova manchete: “Todos por Timor”. Em editorial, Vicente Jorge Silva escrevia: “Foram necessários mais de 15 anos de sofrimento, de genocídio – e de uma prodigiosa resistência popular à ocupação – para que o mundo acordasse para o pesadelo de Timor”.

Daí em diante, Timor-Leste não deixaria de ser tema de notícia, ou debate. A campanha pelo Nobel nasceu dias depois. O semanário O Jornal (que depois daria origem à revista Visão) lançou, em finais de Novembro de 1991, a ideia de um Nobel para Timor, na pessoa do bispo Ximenes Belo. Muitas figuras públicas se associaram a tal proposta, vindo a Assembleia da República depois a formalizá-la. Mas até à manhã de 11 de Outubro de 1996, quando foi conhecida a decisão do comité norueguês, ainda muito aconteceria, da viagem frustrada do Lusitânia Expresso à captura e condenação de Xanana a prisão perpétua (temia-se que ele pudesse ser condenado à morte). O Nobel, para Ximenes e Ramos-Horta, era também para a resistência corporizada em Xanana Gusmão, embora omitisse o seu nome (à data, o de um guerrilheiro preso). Num texto a que deu o nome de “Emoção contida”, nas muitas páginas que o PÚBLICO dedicou ao tema na edição de 12/10/96, o jornalista Adelino Gomes, que sempre abraçou civicamente a causa timorense e dela nunca desistiu, admitia que tinha sido dado “um passo de mil anos”, mas que “a verdadeira vitória” só chegaria quando a comunidade internacional garantisse ao povo de Timor “o direito a dizer em referendo de autodeterminação” o que queria para o seu destino. No editorial desse dia, ao qual dei o título “E agora a liberdade”, também desejava que tal momento viesse depressa, “para que, em paz, o povo timorense” pudesse “finalmente” decidir sobre o seu futuro.

Isso aconteceu, mas três anos depois e com reacções adversas e mais derramamento de sangue, devido à intervenção violenta e criminosa de milícias pró-indonésias logo após o referendo. Em 30 de Agosto de 1999, 98,6% dos timorenses votaram e 78,5% escolheram a independência. Com Xanana já libertado, as manchetes do PÚBLICO reflectiram depois, em curtas palavras, ora o ânimo ora a dor desses dias: “Vitória” (4/9/99), “Angústia” (6/9/99), “Ultimato” (7/9/99), “Ai, Timor” (9/9/99), “Intervenção” (13/9/99), “Chegaram” [os soldados da ONU] (20/9/99). E foi preciso esperar ainda mais para que, num título também sintético, pudéssemos escrever na capa do jornal a palavra “Independente!” Foi na edição de 20 de Maio de 2002, já no primeiro século do novo milénio.

Mas aquela manhã de sexta-feira, a da “bênção do Nobel”, ficaria para a história como um justo e decisivo sopro de liberdade.

Nuno Pacheco foi director interino do PÚBLICO de 25 de Setembro a 28 de Outubro de 1996, de 21 de Setembro a 15 de Dezembro de 1997 e de 6 de Março a 31 de Agosto de 1998

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