Dizer o que fica no espaço entre o silêncio e a escrita

Herta Müller fez de Bucareste a alegoria trágica de uma sociedade insana, manobrada pelo medo de Ceausescu, e onde correm rios de medo e as águas cheiram a óleo de máquinas e a mofo.

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Bucareste é a cidade em que os bairros operários dos subúrbios estão presos ao centro por palavras, por canos de espingardas e por uma “ponte sem rio”. Há feridas abertas que nunca irão sarar DR

O cenário de muitos dos romances da escritora romena de expressão alemã, Herta Müller (n. 1953) — Prémio Nobel de Literatura 2009 — é o de uma cidade desolada, a Bucareste dos tempos do ditador Ceausescu. Um retrato cinzento que funciona para os leitores como uma alegoria trágica de uma sociedade insana, manobrada e controlada pelos mecanismos do medo, pelos dementes mecanismos dos esbirros de um regime totalitário.

Nessa cidade suja, de manhã muito cedo, no meio do cheiro a cebolas queimadas, as mulheres levam para as fábricas manchas de suor seguras debaixo dos braços, e os homens levam garrafas de aguardente seguras por cima das costelas. Nas fábricas e matadouros da cidade os vigilantes estão nos seus postos, como sempre, atentos a que logo pela manhã todos vão saudar a fotografia do “filho mais amado do povo”. O caracol na testa do líder tem um brilho lustroso na fotografia: “O que brilha vê.” Trabalho, honra e partido, grita o cartaz.

Esta é uma cidade em que os bairros operários dos subúrbios estão presos ao centro por palavras e por canos de espingardas e por uma “ponte sem rio”. Há feridas que uma vez abertas nunca irão sarar. Por dentro delas correm rios de medo e as águas vermelhas cheiram a óleo de máquinas e a mofo. As mãos dos homens estão cobertas de ferrugem e as pontas negras dos dedos corroídas. Queimam-se cornos e cascos no matadouro, o vento espalha o ar pútrido nos subúrbios. A noite está tomada por estranhas sombras, compridas e escuras. São silenciosas e desertas as ruas do poder, nelas os cães já não ladram. Ao soprar, até o vento se encolhe de medo nas ruas dos dirigentes do partido, dos oficiais e dos agentes superiores dos serviços secretos. Polícias de luvas brancas apitam e baralham as direcções dos poucos passantes. “A exalação do medo aguça o ouvido”, isto todos sabem. Os oficiais da polícia sorriem com dentes de ouro e cheiram a insecto. As folhas das árvores, dos choupos, que se levantam junto ao rio, são facas verdes.

O que vale a minha vida

Os acontecimentos centrais dos romances de Müller acabam por se diluir no retrato de Bucareste, e a meia dúzia de personagens vai deixando reflexos de uma realidade que a escrita estilhaça: são caçadores silenciosos, vígeis e ubíquos, como os informadores de regimes totalitários. Os seus textos abordam sempre essa relação íntima que ela foi construindo entre a cidade, a sua própria biografia e a sua obra literária. E nós, leitores, não podemos escapar da dor aguda e pungente que há neles, essa amargura, que é aparentemente incurável, que os vai percorrendo debaixo de um céu pesado, como um véu sobre todo o seu exercício literário.

“O que vale a minha vida?” é a questão eternamente colocada por Müller, e aquela a que ela tenta responder em todos as narrativas, mesmo naquelas que abordam a infância na aldeia suábia onde nasceu (transformada, como Bucareste, em palco do seu “objecto de horror”, em que cada paisagem lhe parece exercitar a morte nas suas mais diferentes variantes). O medo paira sempre no ar, “entranhava-se na cabeça”, mas ninguém se atreve a falar dele.

Longe de um estilo típico de prosa de denúncia, as palavras de Müller chegam às páginas em fluxos, acumulam-se e adensam-se no espaço do que não é dito, nas zonas do pensamento onde já só parece haver linguagem simbólica, magma onírico. Por vezes, Müller escreve como se a formulação comum da linguagem não fosse já suficiente para o que ela quer expressar, como se não houvesse palavras para tudo. Deixa sempre algo de indizível no espaço entre o silêncio e a sua escrita. “Quando se fica muito tempo sentado no café, o medo aquieta-se e espera. E quando se volta no dia seguinte, ele já lá está onde a gente se senta. É um pulgão dentro da cabeça, e não sai de lá. Quando se fica demasiado tempo sentado, ele faz-se de morto.” O silêncio é por si só uma coisa, não é um momento entre falas. “A fala é um fio que se morde a si mesmo.” Há uma presença forte em alguém que se mantém calado: são as rugas do rosto e os cantos da boca que falam sem ser por palavras. Os olhos aprendem os sentimentos que os outros carregam. “Escutávamos mais com os olhos do que com os ouvidos”, escreveu ela num ensaio.

A Bucareste de Herta Müller é também o palco onde a polícia do ditador a intimava a depor em interrogatórios. É o eco dessas horas claustrofóbicas que ressoa por toda a sua obra, o eco dos seus passos, o barulho dos eléctricos de manhã cedo, para cá e para lá pela cidade, como quartos iluminados. Não têm horário fixo. Há coisas que só se tornam graves quando pensamos nelas. Cicatrizes que num momento se transformam em chagas. A memória que de repente se acende: as lembranças das noites sem adormecer, ficar desperta até serem horas do primeiro eléctrico do dia, quando mesmo os cães e os gatos apenas vagueiam metade da noite. No escuro do quarto tentar não pensar em coisas luminosas. E no dia seguinte: sala branca de luz, ela no centro com um holofote apontado à cara durante horas, um branco brilhante intermitente a acender-se diante dos olhos, cegueira branca. Interrogatórios: humilhação. É talvez esta a melhor palavra: humilhação. Mas mesmo assim não diz tudo, não é possível dizer tudo.

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