Esconjurar o silêncio nos fiordes noruegueses

Kjell Askildsen criou um universo de silenciosos náufragos, e onde as escassas palavras podem ser tão frias e cortantes como as lâminas de gelo que se desprendem dos beirais dos telhados nórdicos.

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O mundo literário de Askildsen é feito de coisas que ficaram por dizer, de silêncios e de um angustiante e desesperado sentimento de vazio existencial Paul Stang, vista do Stongfjorden, Noruega, 1910/WikimediaCommons

O norueguês Kjell Askildsen (n. 1929), que não foi um escritor prolífico (escreveu pouco mais de uma dezena de livros, três dos quais publicados em Portugal pela editora Ahab – Um Repentino Pensamento Libertador, Uma Vasta e Deserta Paisagem, e Os Cães de Tessalónica), tem vindo, desde há décadas, a produzir um inspirado trabalho literário sobre a inevitabilidade da solidão humana e do nosso irremediável desamparo emocional. Criou um universo de silenciosos náufragos à deriva num mundo de sentimentos hibernados, e onde as escassas palavras que se pronunciam podem ser tão frias e cortantes como as lâminas de gelo que se desprendem de maneira inesperada do beiral dos telhados nórdicos. Aquele é um mundo feito de coisas que ficaram por dizer, de silêncios há muito tempo instalados, dolorosos, de silêncios de um angustiante e desesperado sentimento de vazio existencial.

Neste singular universo literário de Kjell Askildsen não há lugar para descrições bucólicas da paisagem norueguesa; nos contos, as pequenas ilhas e os idílicos fiordes (raras vezes referidos mas sempre presentes) são substituídos por uma mesa de cozinha com uma garrafa de vinho, copos, e um cinzeiro, enquanto os fantasmas interiores adejam em desassossego pela casa. Mas essas casas estão no cimo de montanhas escuras, e quase se ouve o mar dos fiordes no ritmo de algumas narrativas. Como se diante de nós, logo ali a poucos passos, nada mais houvesse do que aquele imenso, silencioso e ameaçador abismo que inevitavelmente espera as personagens.

Num dos contos mais singulares da colectânea Os Cães de Tessalónica (2012), titulado “Um lugar maravilhoso”, um casal parte para a sua bonita casa de Verão, situada num fiorde e com acesso directo à água. Apesar de tudo estar a correr de maneira normal, há entre os dois um ambiente opressivo. Tudo o que ela diz – e invocando sempre, estranhamente, a memória do pai – não é novidade para ele, que lhe faz ver esse facto. Entretanto, o álcool faz a sua aparição, como se fosse a bóia que salva o homem de uma situação que já não suporta. Na verdade, nenhum dos dois se suporta um ao outro. Quase ao mesmo tempo, há a percepção da presença de outro homem que os observa, aparecendo e desaparecendo. Apesar de tudo, aquele é um lugar maravilhoso, como notam ambos. Há entre eles uma brecha que já não irá fechar-se, e que os sorve sem eles se darem conta.

Cartografia emocional

Askildsen parece perguntar o que é que acontece quando uma relação perde o equilíbrio. Como se as personagens não conseguissem resistir ao apelo do fiorde, do abismo, e remassem para longe da margem para nunca mais regressarem. O amor passado foi uma tentativa de afastar uma realidade? O que terá acontecido naquele dia? A resposta é sempre a mesma: experiência do abandono afectivo (entre os cônjuges, entre pais e filhos, entre irmãos). A melancolia atravessa toda a narração: o fiorde negro, frio, como uma maldição antiga, um idílio nórdico perdido, a saudade da simplicidade.

Comum a todas as histórias é o mundo das dificuldades de comunicação, da fobia social, do fechamento de cada um sobre si próprio, dos problemas em ainda conhecermos os outros, essencialmente aqueles que nos são mais próximos, aqueles com quem vivemos. “Bem vistas as coisas, estamos condenados a atormentar-nos um ao outro”, parecem querer dizer as personagens destas histórias. O autor norueguês esboça assim uma espécie de cartografia do desconforto emocional, do vazio e da angústia que sobressaltam as personagens quando menos se espera, e que ele nos mostra através das grandes fissuras que se vão abrindo no conjunto de relações familiares e/ou domésticas.

Há uma constante recorrência a este universo fechado da família, como se alguns parentescos mais não fossem do que uma espécie de condenação, uma carga que os protagonistas são obrigados a carregar durante toda a vida sem os terem escolhido. Com isto o leitor mergulha nessa “vasta e deserta paisagem” que é o vazio existencial, a falta de sentido da vida – os lugares preferidos das personagens de Askildsen. Personagens estas tão características: cépticas e solitárias, angustiadas, homens e mulheres a quem não conseguimos dar um rosto, habitantes quotidianos de um mundo de relações claustrofóbicas, um mundo de paredes despidas de enfeites, sem decorações ou descrições; mas é um mundo em que tudo está ainda coberto por uma frágil camada de “normalidade” rotineira que todos querem preservar em nome de algo, mas que no entanto não esconde estar prestes a abrir brechas terríveis, a mostrar dramas íntimos que em breve se transformarão em irremediáveis abismos.

Nos contos de Kjell Askildsen os pensamentos vêm e vão ao ritmo das batidas das ondas na margem dos fiordes. Ele consegue transformar as emoções no “movimento” de uma imensa paisagem agreste, impregná-la desses sentimentos. A subida e a descida das águas, o vir e o ir das ondas, tudo parece ficar gravado no tempo narrativo. A sua escrita é uma tentativa de esconjurar o grande silêncio, porque como escreveu um outro escritor norueguês, o dramaturgo Jon Fosse, “quando uma pessoa fala nem sempre quer dizer qualquer coisa”.

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