Vade retro, Satanás — 226 minutos de golpes da direita e de ajudas da esquerda

António Costa volta ao estado da nação com esta virada do avesso. Mas com os aliados prontos para atacar o adversário comum. Mesmo assim, virá uma lista de exigências. E um novo ciclo, difícil.

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O Governo e as tensões por que tem passado no debate do estado da nação LUSA/ANTÓNIO COTRIM

Não se sabe bem que exorcismo tirará o primeiro-ministro da cartola para expulsar o demónio que ameaça andar à solta por São Bento, na tarde desta quarta-feira. Até porque há quem o veja, a direita, e quem não o veja, a esquerda. Todos os debates do estado da nação são únicos, mas estes 226 minutos são são mais únicos do que os outros. Pelo momento, pelos temas do momento. Pode ser um grande teste que uma inédita geringonça enfrenta, depois do grande desafio que foi, de facto, montá-la e pô-la a funcionar.

António Costa não é, porém, crente. Sem temores, é de esperar que tente afugentar a criatura infernal anunciada pela direita com a ajuda das esquerdas que o apoiam. Bloco de Esquerda e PCP até poderão levantar a voz em algumas matérias, mas não esqueceram a mensagem de que foi este Governo que permitiu ao país virar a página: “A governação do PS confirmou a derrota dos que assumiam não haver alternativa aos cortes de rendimento, na valorização das medidas de reposição de direitos e de rendimentos e nos avanços que foi possível alcançar neste ano e meio de governação, independentemente da necessidade de ir mais longe”, antecipa o gabinete de comunicação dos comunistas ao PÚBLICO.

Catarina Martins fará as honras do Bloco. Na terça-feira, na preparação do debate, ficou em aberto a possibilidade de o BE vir a tocar nos temas de Pedrógão Grande, do assalto de Tancos e das demissões no Governo. Até ao debate, e mesmo durante, todas as mudanças são possíveis. Mas não são aqueles os temas que farão o centro da intervenção dos bloquistas.

O BE vai pôr pressão, sim, mas sobre um aprofundamento da estratégia de recuperação de rendimentos. Isto implica, em primeiro lugar, a conclusão de negociações que estão em curso (e há muitas). Mas também novas prioridades para a segunda metade da legislatura: a reversão das alterações feitas na lei laboral, uma estratégia económica que permita traduzir o crescimento da economia no aprofundamento da recuperação de rendimentos. E, claro, ainda os temas do próximo Orçamento: reformas antecipadas, alívio fiscal com alterações nos escalões de IRS, e processo de integração dos precários no Estado. O PCP corrobora e acrescenta: que venha a “eliminação das restrições e limitações aos direitos dos trabalhadores que ainda se mantêm” e a garantia do funcionamento em qualidade dos serviços públicos.

“Um antes e depois” de Pedrógão Grande

Mas este é o segundo problema que Costa enfrenta hoje: os números e a economia saíram da arena política. E abriu-se um novo ciclo político, como considera o sociólogo Pedro Adão e Silva, centrado no desempenho dos serviços públicos. É uma ironia: a maioria parlamentar de esquerda consegue, afinal, bons resultados económicos, mas é posta em causa nos serviços públicos. E é um dos maiores problemas para o Governo neste debate, porque é aqui que a esquerda se junta à crítica, questionando as polémicas cativações. Bloco e PCP querem saber quanto ficou na gaveta das Finanças e se isso afectou os serviços públicos. Sobretudo, querem garantir que em 2018 não será (tanto) assim.

Os socialistas não parecem, no entanto, muito preocupados com as críticas que vêm da esquerda. João Galamba, por exemplo, distingue as acusações da direita e da esquerda sobre as cativações. Para o socialista, a direita chama-lhes “cortes”, enquanto a esquerda quer é que a reposição do que foi cortado fosse a outro ritmo, defende.

O social-democrata Luís Montenegro chamou-lhe até outra coisa: “austeridade manhosa” e “não assumida” do Governo. Mas traduz no mesmo: “Mais listas de espera nos hospitais, cirurgias adiadas, escolas encerradas, transportes públicos com muito menos ofertas e pior serviço. E, agora recentemente, um sistema de Protecção Civil que colapsou no exacto momento em que as pessoas precisavam dele.”

É Pedrógão Grande a entrar no debate. Nenhum partido nega que tal vá acontecer, embora o PS espere que ninguém tire dividendos políticos da tragédia. Apesar dessa esperança, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, também tinha já admitido à Lusa que, por causa daquela tragédia, os resultados económicos do Governo possam ser secundarizados no debate. A solução foi sinalizada por Carlos César, numa declaração à Lusa: há “um antes e um depois de Pedrógão na reflexão política que chamaram a atenção para os aspectos mais frágeis da nossa organização social e da capacidade operativa do Estado”.

Quando terminar o debate do estado da nação, ouvindo os partidos que compõem a sua maioria parlamentar, António Costa terá mais certezas sobre os desafios que terá pela frente. Os três óbvios são complicados por envolverem investigações – todos, sem excepção, do incêndio a Tancos, passando pelas demissões dos secretários de Estado. Mas também porque estão empatar negociações numa já tão negociada aliança política. É que o que se segue, verão fora, é a campanha das eleições autárquicas e a negociação do próximo Orçamento, cheia de interrogações. 

Como fica o novo regime para os recibos verdes? Como fica a renegociação das rendas na energia (um combate tão caro à esquerda)? E as novas regras para o arrendamento local? E, mesmo fora do Orçamento, quando se resolve as crise nas secretas, a venda do Novo Banco ou o anunciado veículo para o crédito malparado?

É um debate com pano para mangas o desta tarde, com acrobacias políticas arriscadas, com temas sensíveis em discussão. Mas há muitos que esperam de Costa, que pôs uma tão solar geringonça a funcionar, nada menos do que um salto mortal como resposta a tantos golpes. Um salto mortal é como quem diz uma reviravolta: Vade retro, Satanás.

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