Simone, a mulher que fez do sofrimento uma força

Simone Veil não deixou que as feridas do passado a impedissem de reconstruir a sua vida.

Conheci Simone Veil em Auschwitz-Birkenau no dia 27 de Janeiro de 1995, 50 anos depois da libertação do campo. Era a primeira vez que eu ia ao símbolo maior da indústria de morte nazi e a viagem, organizada pelo Congresso Judaico Europeu, integrava membros de parlamentos nacionais, de governos e do Parlamento Europeu. Entre eles encontrava-se Simone Veil, à época ministra de Estado de França. Era a primeira vez que esta sobrevivente do Holocausto voltava ao local para onde fora deportada pelos nazis a 13 de Abril de 1944.

Simone Jacob — era este o seu apelido de solteira — chegou a Auschwitz com a idade de 16 anos, acompanhada pela mãe Yvonne e pela irmã Madeleine. A família fora apanhada pela Gestapo em Nice e levada para o campo de Drancy, perto de Paris, um dos três maiores campos da Europa de reagrupamento dos prisioneiros, antes de serem deportados pelos nazis. O pai e o irmão, Jean, foram enviados para o Forte IX em Kaunas, na Lituânia, de onde nunca regressaram, e Simone, a mãe e a irmã para Auschwitz-Birkenau, onde chegam a 15 de Abril à noite. Seguindo o conselho de um prisioneiro, na selecção inicial, Simone afirma ter 18 anos de forma a evitar ou pelo menos adiar as câmaras de gás. O número da matrícula tatuado no seu braço é 78651 e o trabalho a que é forçada consiste em descarregar pedras de camiões, cavar trincheiras e aplanar o solo.

Meses mais tarde, perante a chegada iminente do exército soviético, os alemães obrigam os prisioneiros a abandonarem Auschwitz levando-os no que ficou conhecido como as “Marchas da Morte” até ao campo de Bergen-Belsen, na Alemanha. A sobrelotação deste campo, a falta de higiene e de cuidados médicos provocam uma terrível epidemia de tifo que contamina a mãe e a irmã de Simone: a primeira morre a 15 de Março 1945, e a irmã salva-se por um triz devido à chegada das tropas britânicas a 15 de Abril de 1945.

Simone sobrevive e chega a França a 23 de Maio, com a irmã Madeleine. A ela, junta-se a outra irmã Denise que entrara aos 19 anos na Resistência, tendo sido deportada para o campo de Ravensbrück. As três são as únicas sobreviventes de uma família que antes da guerra contava com seis pessoas.

Nessa manhã gélida de 27 de Janeiro de 1995, Simone Veil regressava ao campo onde enterrou a adolescência. O seu rosto fechado não revelava nem emoção nem tristeza. Pressionada pelos jornalistas, manteve-se em silêncio a maior parte do dia. Mas no final da tarde, numa cerimónia solene junto do Memorial Internacional de Auschwitz-Birkenau, a tensão daquela jornada acabou por explodir depois das palavras do bispo polaco dissertando sobre os “holocaustos “ que aconteciam pelo mundo fora... Era quase noite, o frio intenso e estávamos perto dos antigos crematórios e câmaras de gás. Simone Veil não se conteve: “holocaustos”? Como pode o senhor falar em “holocaustos” no abstracto e no plural, neste dia e neste local onde foram assassinadas mais de um milhão de pessoas, entre as quais centenas de milhares de crianças?

Não me lembro da resposta, se resposta houve. Mas ao longo dos anos, e apesar de ter voltado várias vezes a Auschwitz e visitado muitos outros campos de concentração e extermínio, nunca me esqueci daquela tarde no maior e mais sinistro cemitério do mundo em que a ministra de Estado despiu o manto oficial e falou por todos aqueles que nunca conheceram uma sepultura.

Simone não deixou que as feridas do passado a impedissem de reconstruir a sua vida. Era jovem, lindíssima e cheia de vida. Casa em 1946 com Antoine Veil e o primeiro dos seus três filhos nasce em 1947. Mas os anos iniciais não foram fáceis: os sobreviventes não eram bem recebidos, poucas eram as pessoas disponíveis para ouvir histórias que lhes lembravam a sua própria passividade ou mesmo colaboração. Numa época em que todos se proclamavam “resistentes”, as vítimas eram estigmatizadas ou ignoradas por “olhares fugidios que nos tornavam transparentes”. Na sua autobiografia, Une Vie, Simone conta que logo a seguir à guerra, numa recepção em homenagem à irmã que fora resistente, a única vez que alguém se dirigiu a ela foi para lhe perguntar se o número que trazia tatuado no braço era o seu número de bengaleiro: “Depois disto fui chorar para a casa de banho”...

Simone formou-se em Direito, foi ministra da Saúde do Governo de Giscard d’Estaing, presidente do Parlamento Europeu, membro do Conselho Constitucional e da Academia Francesa. Da sua experiencia no inferno nazi ela tirou lições que deram origem aos combates que nortearam a sua vida: contra a discriminação e a humilhação, nomeadamente das mulheres, no qual se inscreve a Lei Veil em 1975 contra a penalização da interrupção voluntária da gravidez, inédita na época em quase todos os países da Europa; a convicção de que o projecto europeu poderia “ser um símbolo da reconciliação franco-alemã e a melhor forma de virar definitivamente a página das guerras mundiais”, convicção que norteou a sua candidatura ao Parlamento Europeu.

A memória foi outro dos seus combates: Veil teve um papel fundamental no reconhecimento, sem precedentes, por Jacques Chirac em 1995 da responsabilidade da França na colaboração com o regime nazi. As suas funções como presidente da Fundação da Memória da Shoah foram igualmente decisivas para o reconhecimento nacional dos “Justos”, em 2007.

Acima de tudo, Simone Veil soube manter a sua humanidade e a esperança: “Continuo a acreditar que vale sempre a pena lutar. Apesar do que se diz, a Humanidade está hoje bem melhor...”

 

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