Jane Goodall, a “nossa” campeã olímpica de “triatlo”

Será incalculável o número de vidas, humanas e não humanas, que Jane Goodall tocou com a sua mensagem.

Se os “chimpólogos” (aka – forma carinhosa de designar os primatólogos que estudam chimpanzés, os nossos parentes mais próximos) tivessem Olimpíadas, Jane Goodall seria a nossa única campeã de triatlo.

Na modalidade “desafio aos preconceitos sociais e científicos” esteve na vanguarda. Na modalidade “descoberta científica” foi a primeira a reconhecer que os nossos parentes mais próximos partilham connosco muitos traços comportamentais e a identificar o seu uso complexo de ferramentas. Na modalidade “conservação e protecção dos nossos recursos naturais”, será a única primatóloga que abdicou de uma incrível carreira científica de mais de duas décadas, para se dedicar, na íntegra, a trabalhar intensamente o tema da conservação do mais precioso e indispensável bem da humanidade: a natureza e tudo o que a ela pertence.

O sucesso em todas as categorias deste triatlo é fulminante. Jane, juntamente com Dian Fossey (que seria pioneira no estudo dos gorilas), e Biruté Galdikas (que se dedica à conservação dos orangotangos), foram muitas vezes chamadas “Trimates” ou “Anjos de Leakey”, porque Louis Leakey, o famoso paleoantropólogo que descobriu alguns dos fósseis de ancestrais humanos mais famosos de África, seleccionou e encorajou as três jovens mulheres a iniciarem os primeiros estudos de campo com os grandes símios.

Na transição dos anos 50-60 ser mulher e abraçar esta aventura não era comum, nem era fácil. Louis Leakey suspeitava que conhecer o comportamento dos nossos parentes mais próximos vivos podia ser uma chave para entender os nossos ancestrais extintos. Também suspeitava que, para entender estes fascinantes seres, seriam necessárias mentes totalmente “limpas” do que se ensinava nos currículos de comportamento animal da época – animais tinham números e não nomes. Animais não tinham emoções ou personalidades. Leakey tinha razão quando escolheu candidatas que não tinham qualquer treino académico.

Foi esta combinação, da sensibilidade feminina, ingenuidade académica, determinação para ir num barco de Inglaterra até África, e resiliência, aguentando meses de espera em Gombe, na Tanzânia, até começar a poder aproximar-se de um dos grupos de chimpanzés, que produziu o sucesso daquela que é, até hoje, a figura mais emblemática da história da primatologia. Uma das frases que melhor descreve o impacto que as descobertas de Jane tiveram na comunidade científica dos anos 60 terá sido a que Leakey escreveu no famoso telegrama de 1963, respondendo à mensagem de Jane anunciando que tinha visto os chimpanzés a fazerem ferramentas para pescar térmitas: “Now we must redefine ‘tool’, redefine ‘man’, or accept chimpanzees as humans” (“agora temos que redefinir ferramenta, redefinir humanidade ou aceitar os chimpanzés como humanos”).

Mas foi a última, e mais nobre, categoria deste triatlo, que transformou Jane num ícone verdadeiramente global. Nos anos 80, ao sobrevoar Gombe e vendo que a floresta tinha praticamente desaparecido na totalidade, e que tudo se tinha transformado numa enorme savana, dedicada a plantações de cultivo (que nada duram em solos pouco férteis), foi visionária em intuir que ambos humanos e chimpanzés enfrentavam uma crise, que rapidamente se tornou uma “epidemia” mundial: o desespero por garantir os mesmos recursos, protecção e comida. E ainda mais visionária em promover a ideia de que a solução para o problema da conservação dos recursos naturais e da protecção da vida selvagem tem de passar por uma solução integrada, liderada pelas comunidades locais que habitam as zonas a proteger.

Já são mais de 30 anos dedicados a viajar mais de 300 dias por ano, de trabalho árduo, intenso, personalizado, para levar aos quatro cantos do mundo a mensagem que ela própria designa “hope”. Será incalculável o número de vidas, humanas e não humanas, que Jane Goodall tocou com a sua mensagem, bem como o número de mudanças reais, em termos de políticas de conservação, locais e globais, que foram possíveis devido à influência desta personalidade ímpar. Jane é a prova de que a vontade de um indivíduo pode desencadear uma mudança global.

Na primatologia é bem conhecido o que designamos como “efeito Jane Goodall”. A nossa profissão tem muito mais mulheres do que homens, e isso deve-se, em grande parte, à mesma influência que Jane continua a ter na geração que hoje tem 21 anos, tal como teve na minha geração e anteriores. Jane não se lembrará, mas em 2012, partilhámos uma bebida (a minha última durante muito tempo!) em Gombe, enquanto víamos o pôr do Sol. Em 2013 voltamos a ver-nos e escreveu no seu livro, enquanto sorria ao ver a minha muito visível barriga de grávida: “For Andrés, follow your dreams” e disse-me: “É a primeira vez que dedico um livro a alguém que ainda não nasceu!”

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