Vive la France

Só falta mesmo contar os votos. E poder dizer, como Obama, Vive la France.

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1. Não há, talvez, memória de uma eleição com tamanha repercussão europeia e internacional como aquela que hoje ao fim do dia terá o seu desfecho. A prudência não permitiu, até ao último minuto da campanha, festejar vitórias antecipadas, apesar da distância folgada entre os dois candidatos a favor de Emmanuel Macron e do desvario dos últimos dias da campanha de Le Pen. A eleição de Donald Trump ou a vitória do "Brexit" ensinaram a Europa a não descansar antes de tempo. O caso francês, se Le Pen ganhasse (ou ganhar) conduziria inevitavelmente à destruição do projecto europeu. Seria um abalo sísmico de dimensões catastróficas. O "Brexit" foi um golpe rude, o maior desde a sua fundação, ao retirar-lhe uma “metade” politica, económica e estrategicamente muito importante, alterando profundamente os seus equilíbrios internos. Trump pode tomar decisões perigosas para a guerra ou a paz no mundo, mas o sistema americano foi estabelecido para limitar os seus poderes. Se a França caísse, como escrevia recentemente Joschka Fischer, antigo chefe da diplomacia alemã, a Europa cairia e o mundo inteiro sofreria as consequências. Talvez por isso, o anterior Presidente americano, que os europeus continuam a admirar, apelou directamente ao voto em Emmanuel Macron, lembrando que o que está em causa não diz apenas respeito à Europa mas ao mundo. Na Alemanha instalou-se a “Macronmania”. A imprensa rendeu-se ao jovem político que ousou desafiar o status quo e que lhe apresenta uma nova imagem da França, mais dinâmica e mais moderna, como escreve o circunspecto Handelsblatt. A chanceler não esconde a simpatia. Sigmar Gabriel, o ainda vice-chanceler social-democrata que conviveu com Macron quando ambos eram ministros da Economia, garante que ele terá “a força necessária para tirar a França da letargia”. O Die Welt chama-lhe “superMacron” e diz que trouxe uma lufada de ar fresco à cultura política europeia.

Não é apenas o pânico de Le Pen. É mais do que isso. Se levarmos em conta que o programa de Macron para a Zona Euro choca de frente com a receita alemã até agora dominante, o sucesso do candidato ao Eliseu do outro lado do Reno é ainda mais significativo.

2. Macron quer duas coisas da Alemanha, escreve Charles Grant do Center for European Reform de Londres. Quer que Berlim adopte medidas expansionistas para reduzir o seu gigantesco excedente comercial, ajudando a França e outros países com menor crescimento a melhorar a sua situação económica, através das exportações. Insiste em que, tal como está, a Zona Euro pode não resistir à próxima crise, defendendo uma maior partilha de soberania mas também do risco. Sylvie Goulard, a sua principal conselheira em matéria de política europeia, põe o dedo na ferida, lembrando que o euro não garantiu à Europa a indispensável convergência entre as suas economias. “É apenas um marco mais fraco”, acrescenta o próprio candidato. Mas Macron também diz que a França só ganhará credibilidade junto da Alemanha se reformar a sério a sua própria economia. Décadas de estagnação e de desemprego elevado exigem mudanças profundas.

Os mais pessimistas apostam em que será muito difícil fazer vergar a Alemanha. Os mais realistas contra-argumentam que, se a Alemanha não conseguir tirar as devidas lições do risco que Le Pen fez correr à Europa (esperamos que sim), daqui a cinco anos ela ganhará as eleições. O mesmo insuspeito diário económico alemão escrevia na sexta-feira pela pena de Andreas Kluth que nenhum país é tão importante para a Alemanha como a França. “A única excepção possível (que me perdoem os britânicos e os polacos) é a América.” Os alemães, prossegue o editorialista, ainda estão convencidos de que sem o “motor” franco-alemão a Europa não tem futuro. Kluth talvez esteja a ser demasiado optimista, a avaliar pelos últimos anos. Mas a ideia em si prevalece entre a elite política alemã. Conclui que “é por isso que a Alemanha irá longe na ajuda ao candidato centrista para que tenha sucesso na sua presidência”. Não foram poucos os analistas alemães que escreveram na mesma direcção nos últimos dias. “O futuro da UE e, em particular, o da Alemanha depende da capacidade de Macron para tirar a França da sua longa malaise económica e resolver uma crise de identidade paralisante”, escreve ainda Fischer. Ou seja, depois das eleições de Setembro, Berlim também terá de enfrentar algumas decisões difíceis. “Se os líderes não tirarem as conclusões certas do que poderia ter acontecido, daqui a cinco anos haverá de novo Le Pen”, acrescenta o antigo chefe da diplomacia alemã.

3. Macron sabe que é fundamental recriar o eixo Paris-Berlim para que a Europa se salve, restituindo algum equilíbrio à relação entre os dois países centrais da integração europeia, agora que o "Brexit" os volta a colocar frente a frente. A sua visão do futuro, à parte o euro, não entra em conflito com a de Merkel. Considera a NATO mais “indispensável” do que nunca. Aceita o diálogo com Moscovo, mas “em posição de força e sem negociar o inegociável”. Talvez porque é muito novo, não partilha das ilusões sobre la grandeur de la France que François Fillon descrevia como “uma voz singular para os povos de todo o universo” e que Marine plagiou com a veemência que faltou ao candidato de Os Republicanos.

Mas a França não deixa de ser um grande país, que dispõem de múltiplos instrumentos de poder, da force de frappe ao lugar permanente no Conselho de Segurança, passando por uma capacidade militar considerável. “A questão é saber como vai utilizar eficazmente esses instrumentos de poder para voltar a dar vida à diplomacia francesa”, escreve Alexandra de Hoop Scheffer do German Marshall Fund de Paris. Macron vê esse poder no quadro da Europa. Segue a política de Hollande no combate contra o Daesh na Síria e no Iraque ao lado dos americanos. Poderá carregar um pouco demais a tecla da “protecção” europeia perante uma globalização sem regras para o gosto dos alemães e de outros grandes exportadores europeus. Defende um “Buy European Act” e reciprocidade em matéria de comércio internacional. Mas nada que não impeça um entendimento. Agora que o Reino Unido está de partida, alguma forma de atenuar os efeitos da globalização será mais facilmente aceitável.

4. Le Pen não perdeu uma oportunidade para dizer que é Merkel quem governa a França. Acabará Macron por “render-se” a Berlim, como os seus antecessores? Dificilmente. A campanha já pôs à prova a sua fibra e não foi pouco: é preciso coragem política para não ceder à barragem de Le Pen contra a comunidade islâmica da França, à França cristã de Fillon, ao discurso ambíguo de Mélenchon. Se ainda há valores europeus, ele representou-os.

O seu primeiro objectivo é restituir à França a sua influência na Europa, mas as suas políticas são aquelas que os países do Sul defendem: sem convergência económica o euro não sobreviverá.

O desafio que enfrenta é imenso. Precisa de força política para levar a cabo as reformas económicas e sociais que já tentou quando foi ministro da Economia, mas que não passaram a barreira do Eliseu. Terá de responder àqueles que hoje votam em Le Pen porque viram as suas condições de vida sofrer duramente com a globalização e a crise financeira e foram deixados ao abandono por uma elite indiferente. Mas, feitas as contas, é a última lufada de esperança numa Europa desoladora. E a prova de que é possível vencer o populismo e o nacionalismo sem se render às suas bandeiras. Nesse sentido, a sua vitória terá um imenso significado. Falta-lhe um partido, dizem os velhos partidos. Talvez não. Uma recente sondagem já a pensar nas legislativas de Junho dá ao En Marche!, com pouco mais de um ano de vida, uma vitória confortável, mesmo que ainda não uma maioria absoluta. Só falta mesmo contar os votos. E poder dizer, como Obama, Vive La France.

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