“O meu irmão odiava o Sobral Cid”

Falta de vigilância do doente mental permitiu o seu suicídio, diz Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

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ADRIANO MIRANDA

Dez anos mais nova do que o irmão, Maria João Carvalho recorda-se de como Tozé era “um excelente aluno” até abandonar os estudos, no 10.º ano de escolaridade: “Tinha as notas máximas. O sonho dele era ser engenheiro agrónomo.” Namorada nunca lhe conheceram. O divórcio dos pais, tinha ele 17 anos, e a descida do nível de vida que se lhe seguiu, foi algo que nunca terá ultrapassado por completo: “Ficou com a obsessão de enriquecer.” Começou a abusar de speeds, comprimidos para aumentar a concentração e reduzir o tempo de sono, e tornou-se servente de pedreiro, apesar de ter interesses muito variados, que iam da literatura à arte e à política, prossegue a irmã do antigo doente do hospital Sobral Cid, que falou com o PÚBLICO ao telefone, nesta terça-feira, dia em que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou Portugal neste caso.

A família sempre morou perto da unidade de saúde mental, e por isso o rapaz conhecia o local mesmo antes de lá ser internado: “Jogava ténis num campo que lá existe e sempre se admirou por aquilo ser um depósito de doentes mentais profundos.”

Por isso, quando lhe foram sucessivamente diagnosticadas várias patologias nunca confirmadas de forma definitiva – esquizofrenia, perturbação da personalidade borderline, psicose maníaco-depressiva –, Maria João Carvalho conta que o irmão pediu ao médico para não ser internado naquele hospital, até pelo estigma que sabia que lhe ficaria associado quando os vizinhos soubessem. “Ele não queria ir para lá. Odiava o Sobral Cid.”

Mas foi ali que o internaram sete vezes, entre 1984 e o ano em que se suicidou, 2000. “Os exames toxicológicos ao corpo revelaram que não estava medicado quando faleceu. Além de tudo houve também negligência médica”, acusa a mesma familiar, que revela qual era o drama que assombrava Tozé: “Dizia que estava condenado porque aos 35 anos nunca tinha feito nada de relevante.”

Planeara tornar-se condutor de camiões, mas “o historial clínico dele foi enviado para a Direcção-Geral de Viação e até a carta de ligeiros lhe cassaram. Sentiu que lhe tinham tirado a última oportunidade da vida.” Aconteceu três meses antes de se atirar para a linha do comboio, numa altura em que “já não bebia havia dois anos.”

Uma semana antes do dia fatídico Tozé, que costumava dizer que não gostava de ser controlado pelo tempo, pediu à família que lhe devolvesse o relógio de pulso. “Deve ser para ver as horas enquanto está no hospital”, pensaram a irmã e a mãe. “Só depois percebemos que era para ver os horários dos comboios.”

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deu nesta terça-feira razão à mãe de Tozé, que lhe fizera chegar uma queixa, condenando o Estado português a pagar-lhe cerca de 26 mil euros de indemnização. Considerou que Portugal incorreu neste caso na violação do segundo artigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que obriga os Estados a proteger a vida das pessoas.

“Era expectável que perante um doente que tinha recentemente tentado cometer suicídio e que tinha propensão para fugir do hospital os funcionários tivessem tomado medidas para o evitar”, observam os juízes, que criticam também a lentidão dos tribunais portugueses neste processo que se arrastou durante anos.

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