Tailândia: o país dos golpes de Estado está a habituar-se à ditadura

A junta militar que governa com mão pesada o país não dá mostras de ceder um milímetro, deixando desesperados os activistas que aspiram ao regresso da democracia. O novo rei quer afirmar-se como mais um foco de poder.

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Protestos em Banguecoque, junto à sede do partido Puea Thai, em Novembro de 2013 DAMIR SAGOLJ/REUTERS

Para alguém que nos últimos tempos foi preso duas vezes por lutar contra um regime ditatorial, o estudante Rangsiman Rome tem uma compreensão no mínimo elevada em relação à pouca atenção dada pela comunidade internacional à situação que a Tailândia vive há quase três anos. “Temos de reconhecer que há muita coisa a acontecer neste mundo”, diz o activista de 24 anos ao PÚBLICO, por telefone. “Comparando com a situação no Médio Oriente, ou mesmo na Birmânia, a Tailândia é bastante pacífica. Ninguém morreu.”

Há quase três anos que a Tailândia é governada por uma junta militar que tomou o poder de um Governo eleito democraticamente, num golpe que foi o culminar de semanas de protestos nas ruas de Banguecoque. Os generais que compõem o governo – que oficialmente se denomina Conselho Nacional para a Paz e Ordem – prometeram que o seu papel seria apenas o de encaminhar o país de volta à democracia. Mas os sucessivos adiamentos das eleições e a aprovação de uma nova Constituição despertam receios de que este país com 66 milhões de habitantes permaneça uma ditadura indefinidamente.

A Tailândia não é um país estranho a golpes de Estado. Em 80 anos, os militares tentaram chegar ao poder pela força em mais de 30 ocasiões, tendo tido sucesso em 12 – a última das quais em Maio de 2014. “Os tailandeses habituaram-se aos golpes de Estado”, diz, por email, o professor do Instituto de Assuntos do Sudeste Asiático em Chiang Mai, Paul Chambers. Porém, nota o académico, os actuais governantes militares da Tailândia apresentam algumas diferenças em relação a outros antecessores. “A actual junta pretende dominar a política tailandesa, de forma directa ou indirecta, durante o mais tempo possível”, explica.

Para o conseguir, o general e primeiro-ministro Prayuth Chan-ocha tem optado por várias estratégias, que incluem o esmagamento quase total da oposição, o recurso a poderes excepcionais e a adopção de uma Constituição que, na prática, permite aos militares exercer uma grande influência mesmo quando o poder for devolvido aos civis.

Mas nos cálculos dos generais que governam a Tailândia passou recentemente a entrar um novo factor de efeito desconhecido. Pelo menos até há pouco tempo. A morte do rei Bhumibol, monarca desde 1946, em Outubro, deixou o país em estado de luto. Para além do afecto conquistado por Bhumibol, descrito como uma das poucas instâncias de estabilidade num país instável, com a sua morte entrava-se em terreno desconhecido.

O seu sucessor, o príncipe Maha Vajiralongkorn, subiu ao trono apenas em Dezembro, mas não perdeu muito tempo para mostrar diferenças em relação ao pai. Numa decisão quase inédita, o rei Rama X exigiu mudanças ao projecto de Constituição elaborado pelos militares e que meses antes tinha sido aprovado em referendo. As alterações passam pela possibilidade de poder manter os seus poderes reais mesmo estando fora do país – Rama X passa largas temporadas na Alemanha – e o fim da exigência de uma assinatura secundária para os decretos reais, o que permite que o rei possa aprovar sozinho a legislação que entender.

A especialista Eugénie Mérieu descreve a decisão do rei como “reminiscente da monarquia absoluta”, num artigo publicado na revista The Diplomat. Ao contrário de Bhumibol, o novo rei parece não querer ter um papel de estabilizador – e até de contrapoder – em relação ao Exército, antes parecendo querer competir por domínio. Paul Chambers vê Rama como um monarca “mais absolutista” que o pai e nota uma tentativa de “dominar os militares logo à partida”.

Os limites da oposição

Desde 2014 que Rangsiman divide o seu tempo entre o mestrado em Direito na Universidade de Thammasat, em Banguecoque, e o activismo no Movimento Nova Democracia (NDM), uma das organizações que tem estado na linha da frente na promoção de valores democráticos e na luta contra a ditadura militar. A tarefa não é fácil num país onde a liberdade de expressão é altamente limitada – a Tailândia tem uma das leis mais duras do mundo sobre injúrias. A monarquia, em concreto, é objecto de um extremo secretismo, em que noticiar sequer acontecimentos relativos à família real pode dar azo a pesadas penas de prisão.

O golpe de 2014 veio limitar ainda mais as acções de protesto. “Qualquer actividade política passou a poder ser vista como ilegal”, diz Rangsiman, referindo-se, por exemplo, aos ajuntamentos de pessoas. “É praticamente impossível para a NDM organizar actividades”, lamenta. Com o aumento da repressão, uma das acções mais comuns do movimento é lutar pela libertação dos seus membros detidos. Quando Rangsiman falou com o PÚBLICO, a grande preocupação era fazer pressão para que fosse libertado um activista preso depois de ter partilhado numa rede social um artigo que criticava as leis de lesa-majestade, que punem a crítica à monarquia.

Para além da utilização abusiva destas leis, a junta militar tem também mobilizado o artigo 44.º da Constituição para reprimir os opositores. Esta disposição dá amplos poderes ao general Prayuth, que apenas tem de invocar a necessidade de “manutenção da ordem pública”. “A Tailândia não está claramente no caminho para a democracia, quando a liberdade de expressão é censurada, as críticas são punidas e a actividade política é proibida até mesmo dentro da universidade”, disse recentemente o director para a Ásia da Human Rights Watch, Brad Adams.

Enfrentar uma pena de prisão na Tailândia pode também significar maus-tratos e violações de direitos básicos. Em Setembro, a Amnistia Internacional denunciava a existência de uma “cultura de tortura” nas prisões tailandesas, dando conta de mais de 70 casos de pessoas sujeitas a espancamentos e afogamentos.

Para se manterem no poder, os militares estão a interferir até com instituições aparentemente insuspeitas. Em Dezembro, o general Prayuth não hesitou em bloquear a nomeação de Somdet Chuang para liderar o Conselho Sangha, o principal organismo budista no país. Como é tradição, foi escolhido o monge mais velho, mas a junta opôs-se alegando as ligações de Somdet a uma seita com má reputação, a Dhammakaya.

Os Shinawatra

Porém, vários analistas sublinham que a grande preocupação dos generais é a ligação entre a Dhammakaya e a família Shinawatra, à qual pertencem os dois últimos primeiros-ministros eleitos, ambos depostos em golpes militares. Esta seita cresceu de popularidade durante os anos 1990, estando muito associada ao crescimento económico da Tailândia. Os especialistas descrevem a Dhammakaya como estando para o budismo como os grupos tele-evangelistas estão para a Igreja Católica, ambos criticados por dependerem das largas contribuições monetárias dos seus membros.

Os líderes da seita chegaram a ameaçar enviar os seus cem mil monges noviços para apoiar os protestos pró-Shinawatra em 2010, segundo o Asia Times. Os membros da Dhammakaya também têm tentado incitar novos protestos contra a junta. Porém, tanto os membros da seita como os dirigentes dos chamados “camisas vermelhas” – apoiantes do ex-primeiro-ministro, Thaksin Shinawatra – negam qualquer relação entre si. O confronto entre o governo e a seita atingiu o ponto mais alto em Fevereiro, quando quatro mil polícias cercaram o gigante templo nos arredores de Banguecoque para prender um dos líderes espirituais da Dhammakaya, acusado de desvio de dinheiro.

Paul Chambers acredita que a maioria dos tailandeses ainda apoia o movimento de Thaksin. A instabilidade na última década na Tailândia deve-se às profundas clivagens entre as classes médias e urbanas, concentradas sobretudo em Banguecoque, e a esmagadora maioria da população mais pobre das zonas rurais. Foram estes que deram grandes vitórias eleitorais a Thaksin Shinawatra, em 2001, e à sua irmã, Yingluck, dez anos mais tarde.

Porém, entre a elite da capital, Thaksin é visto como um populista, manchado por casos de corrupção, pelos quais foi julgado e condenado, mas nunca preso, dado que vive num exílio auto-imposto desde que foi derrubado, em 2008. A tentativa de Yingluck aprovar de uma lei de amnistia que iria permitir o seu regresso foi um dos principais factores que motivaram os protestos em 2014, que acabariam por lhe dar o mesmo destino que o irmão.

Para quem defende os valores democráticos, este passado recente traz um grande desafio. “Muitas pessoas estão numa situação estranha em que não querem a junta, mas continuam a odiar Thaksin e isso fá-los não querer de volta a democracia. Pensam que com o regresso da democracia, irá regressar também Thaksin Shinawatra”, diz Rangsiman.

Esse regresso da democracia parece longínquo para este estudante. Há muita gente descontente com a junta, especialmente com os sucessivos adiamentos na marcação de eleições – foram marcadas para o final do ano passado e há agora indícios de que não vão ser este ano. Mas a vida quotidiana em Banguecoque permanece praticamente igual. “A junta aprendeu com as várias tentativas e golpes bem-sucedidos do passado que não deve interferir com as pessoas de Banguecoque, especialmente com a classe média”, observa o activista.

Um dos factores-chave para esta “normalização” da ditadura militar é a boa relação entre a junta e as grandes empresas estrangeiras com interesses naquela que é a segunda maior economia do sudeste asiático. Apesar de uma ligeira queda, o turismo, motor da economia local, tem vindo a recuperar, tendo sido responsável por 17% do rendimento nacional no ano passado. “Estas empresas não são sinceras no seu apoio à democracia e até podem ser vistas como as principais apoiantes da junta”, denuncia Rangsiman. O académico Paul Chambers aponta directamente o dedo às empresas chinesas que diz “ajudarem a manter a junta no poder”.

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