A questão indígena no Brasil

A solução terá de passar por novas delimitações das reservas, com a assumpção por parte do Estado brasileiro da responsabilidade indemnizatória em relação aos actuais proprietários das terras em causa.

“Se eu dissesse que Brasília é bonita veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia veem nisso uma acusação. Mas a minha insônia não é bonita nem feia, minha insónia sou eu, é vivida, é o meu espanto. (...) Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera não cresceu.”

Clarisse Lispector

Cinquenta anos depois as palavras de Clarisse Lispector invadem-nos o pensamento enquanto o olhar devaneia pelas avenidas, pela vermelhidão da terra, pelos edifícios e pelas pessoas que se adivinham mais do que se vêem. Com o Brasil imerso numa profunda crise que extravasa largamente as dimensões política, económica e social, Brasília afecta-nos com a sua estranheza de sempre, misto contraditório de utopia e distopia, lugar habitado sobretudo por uma sensação do abstracto que contamina praticamente a vida inteira. Uma visita ao Senado e à Câmara dos Deputados tem tanto de encantatório como de repulsivo.

Na semana passada tive o privilégio de contactar com a melhor parte do Brasil. Homens e mulheres investidos em funções políticas, empenhados em lutas difíceis por causas justas, inteiramente alheios ao magma de corrupção que tem historicamente corroído as instituições brasileiras. Fui ao Brasil acompanhado de duas colegas deputadas europeias, Marisa Matias e Estefania Torres, no âmbito de uma missão organizada por uma organização não-governamental sediada em Bruxelas que se dedica à promoção e salvaguarda dos diretos dos povos indígenas espalhados pelo mundo, a UNPO. Dias antes havíamos aprovado por larga maioria uma resolução no Parlamento Europeu apelando a uma alteração do comportamento das autoridades brasileiras em relação aos Guarani-Kaiowá, etnia historicamente bem conhecida que tem sido alvo de uma violência desmedida, nem sempre devidamente reprimida pelo Estado de Direito brasileiro.

Em Brasília encontrámos um Senador e vários deputados, do PSB e do PT, profundamente empenhados em modificar uma situação que conflitua com a defesa dos direitos humanos e em nada concorre para a afirmação internacional de um país que deve ter como imagem mais forte a sua identidade multicultural. Essa multiculturalidade é o resultado histórico de encontros e desencontros marcados por um número elevadíssimo de tragédias individuais e de dramas colectivos. A miscigenação operada após a chegada dos portugueses comporta crimes de tal ordem graves que um dia deverão merecer uma reparação simbólica ao mais alto nível institucional. Não podemos, porém, ficar prisioneiros da história, antes devemos concentrar as nossas energias na resolução dos problemas com que o presente nos confronta.

Na realidade subsiste um grave problema indígena na sociedade brasileira. Problema esse que não escapa à consciência política do país como o comprova o facto de ter merecido tratamento sofisticado e avançado no plano constitucional. A questão coloca-se na distância que subsiste entre a esfera da lei e a realidade concreta da vida. Com o intuito de conhecermos in loco a situação, deslocámo-nos, com o prestimoso auxílio da força aérea brasileira, ao Estado do Mato Grosso do Sul, na companhia de parlamentares brasileiros que corajosamente têm enfrentado poderes fácticos instituídos e preconceitos históricos prevalecentes. Aí, num ambiente próprio de uma sociedade aberta e democrática, participámos em múltiplas reuniões com líderes indígenas, movimentos cívicos associados à defesa dos direitos e interesses dos índios e ainda com responsáveis políticos ao nível estadual. O problema é grave e acaba por entroncar no próprio modelo de desenvolvimento adoptado pelo país. As comunidades indígenas reclamam a extensão das reservas a que foram acantonadas no século passado, as quais se revelam insuficientes para assegurar a perpetuação dos seus modos de organização cultural e social. O alastramento das monoculturas da soja e da cana-de-açúcar constitui o principal obstáculo à concretização desta expectativa.

A solução terá de passar por novas delimitações das reservas, com a assumpção por parte do Estado brasileiro da responsabilidade indemnizatória em relação aos actuais proprietários das terras em causa. Claro que isso não se revela uma tarefa fácil, dada a convergência de factores racistas e economicistas num discurso altamente desfavorável às pretensões da população indígena brasileira. Compete ao poder político dirimir o conflito, nunca perdendo de vista os princípios constitucionais vigentes que traduzem a imperiosa necessidade de assegurar o respeito  ?  historicamente pouco valorizado ? pelos cidadãos brasileiros que integram o grupo dos chamados povos originários. Sendo este um desafio que se coloca ao Brasil, constitui também uma responsabilidade que não deve ser elidida por todos quantos no mundo inteiro se preocupam com esta problemática.

Dos vários interlocutores com quem privámos, quer no Mato Grosso do Sul, quer em Brasília, e correndo o risco de cometer alguma injustiça com os demais, permito-me salientar as figuras do senador João Capiberibe e da sua mulher, a deputada Janete Capiberibe, que de forma superior constituem a expressão do que de melhor há na política brasileira. As suas vidas, totalmente confundidas nos planos público e privado, identificaram-se com as lutas mais generosas que marcaram o percurso histórico do Brasil nos últimos 50 anos. Combateram a ditadura, percorreram um longo roteiro de um exílio repartido por vários países, participaram no esforço de consolidação da democracia, adquiriram por direito próprio um estatuto de referências morais. Associam a tudo isto uma longa tradição de empenhamento na causa dos povos indígenas brasileiros.

No meio dessa prodigiosa abstração que Brasília continua a constituir, as suas vozes tranquilas e experimentadas elevam-se como um ponto de referência ética inestimável, que tanta falta faz nos dias que correm.

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