Manuel Ulisses, um galerista que faz da discrição a alma do negócio

Uma das galerias portuguesas mais importantes, a Quadrado Azul, celebra as suas três décadas com exposições em Lisboa e no Porto.

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Manuel Ulisses, o galerista da Quadrado Azul LEF LUIS EFIGENIO / NFACTOS

Quando lhe perguntamos qual a exposição que gostaria de destacar nestes trinta anos de vida da galeria que fundou, Manuel Ulisses hesita, pois sabe que um bom galerista, tal como um bom pai, não deve ter preferências. Mas acaba por escolher uma das muitas que fez sobre a pintura de Fernando Lanhas. E isto porque “tem uma obra reduzidíssima, é pouco conhecido, é do Porto, tal como nós, e é excepcionalmente bom”. Fernando Lanhas é também um dos fundadores da abstracção geométrica em Portugal, e alguém que foi defendido ciosamente por Fernando Guedes, falecido há pouco tempo, um dos criadores da moderna crítica de arte no nosso país. A conversa flui por aqui, entre grandes nomes do Porto e os artistas que a galeria apoiou desde sempre. Um pouco adiante já se fala de Ângelo de Sousa, outro pintor com quem Manuel Ulisses trabalhou durante muitos anos. E conta como, quando este último ganhou o prémio EDP Pintura, em 2000, fez questão de o dividir com o galerista. “O Ângelo dizia que o mérito era tanto meu como dele”, explica-nos.

A Quadrado Azul, que adoptou o nome da revista fundada por Almada e Amadeo em tempos de futurismo em Portugal, nasceu assim em 1986, fruto da vontade deste homem que sempre gostou de arte. No princípio viajava com frequência até Barcelona, e essas viagens permitiram-lhe apurar um gosto pessoal que hoje se revela, sem falhas, na exposição que inaugurou há pouco no espaço de Lisboa. Intitulada QAXXX (P1) – talvez uma referência óbvia aos códigos numéricos que Fernando Lanhas gostava de utilizar como títulos para a sua pintura – completa-se com uma segunda mostra, QAXXX (P2) que abriu no espaço do Porto. Durante o espaço de um ano, teremos ainda mais duas exposições colectivas em Lisboa e no Porto, dessa vez com obras originais feitas especificamente, bem como a edição de um livro sobre as três décadas desta instituição.

 Nos anos 90, a Quadrado Azul ficava na Rua de Costa Cabral, no Porto, o espaço onde começara. Mais tarde, quando a Miguel Bombarda se transformou no centro galerístico da cidade nortenha, Manuel Ulisses adquiriu aqui um primeiro espaço, que agora trocou por outro que tem a vantagem de possuir um belíssimo jardim nas traseiras, um pouco como uma pintura de paisagem que se oferece aos visitantes e coleccionadores que ali entram. Em Lisboa, também não ficou no primeiro local escolhido, entre o Chiado e o Cais do Sodré. Está agora em Alvalade, que fica fora do centro turístico mas que concentra uma actividade importante ligada à arte contemporânea. Galeristas, coleccionadores e ateliers de artistas vão pouco a pouco ocupando os lofts e as antigas oficinas do bairro e transformando-o numa visita obrigatória para quem quer conhecer a vida artística em Lisboa.

Manuel Ulisses, na discrição que o caracteriza, sabe provavelmente disto tudo mas não fala no assunto. Prefere referir o gosto com que começou, logo nos primeiros anos de actividade, a trazer artistas estrangeiros, principalmente espanhóis, para expor na sua galeria. Foi aqui que se fez a primeira exposição numa galeria comercial portuguesa de Antoni Tàpies, foi também aqui que Ulisses mostrou uma importante obra de Salvador Dalí, 10 receitas para alcançar a imortalidade.

“Eram dez peças que vinham dentro de uma caixa. Ela tinha uma pega que era o auscultador de um telefone!”. Haveria decerto muitas mais histórias para contar, nesta galeria que sempre se esforçou por abrir os mercados internacionais aos artistas com quem trabalhava, sobretudo através da participação anual no Arco, a feira de arte de Madrid. Mas Manuel Ulisses sabe que o segredo é a alma do negócio, e pouco se abre, tanto em relação aos seus coleccionadores como à sua vida. Prefere que se veja a exposição, que de certa forma resume bem aquele que foi e ainda é o seu trabalho.

E para a exposição entregou a curadoria a um dos dois ou três grandes curadores portugueses da actualidade, Miguel von Hafe Pérez. Este, que escolheu cerca de trinta artistas para a exposição de Lisboa, deu o maior destaque à obra desses dois nomes fundamentais da história da galeria, Lanhas e Ângelo, salientando também, na sala de entrada da galeria, um conjunto de peças surpreendentes de José de Guimarães. Logo à entrada, contudo, um conjunto de fotografias de Carlos Vidal de 1999, A mulher e a política, recorda o escândalo da sua exposição pública nesse já longínquo ano. Em suma, este primeiro piso de QZXXX dá o mote para tudo o que vamos ver a seguir: um misto de aposta em nomes seguros e consagrados, aliados a jovens obras de artistas recém-formados que Ulisses nunca se esquivou a apoiar. 

A exposição desdobra-se pelos dois pisos da galeria, e inclui mais de 40 peças distintas. Para além dos já citados, destacaremos as obras de Francisco e João Queirós, de Francisco Tropa, Rigo 23, Gonçalo Sena, Ana Santos, Arlindo Silva, Nozolino, Canoilas… Mas rapidamente nos apercebemos de que esta, como outras selecções, serão fúteis: a qualidade da exposição vive e muito das associações surpreendentes que a montagem vai fazendo, e que nos levam a descobrir muitas peças como se fosse a primeira vez que as vemos.

Manuel Ulisses conta-nos ainda que os próximos 30 anos estão assegurados: trabalha já com o genro, e em certos casos os novos clientes são filhos de outros clientes mais velhos. Indagado sobre a sua colecção pessoal, Manuel Ulisses prefere falar do espólio da galeria que pôs à disposição do curador para que este trabalhasse como entendia. Mas vai adiantando que não faz parte dos seus planos desfazer-se de nenhuma das obras que aqui expõe.

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