Constitucional nunca aceitou segredo sobre rendimentos

Jurisprudência constitucional aponta para a livre divulgação de remunerações e bens sujeitos a registo, como casas, carros ou barcos. As excepções são apenas as relativas a informações sobre familiares ou terceiros. Só aí pode justificar-se o sigilo.

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As decisões do TC apenas têm admitido segredo na parte relativa a familiares do declarante PEDRO CUNHA

A pretensão dos administradores da Caixa Geral de Depósitos de manter sob sigilo as declarações de rendimentos e património que decidam vir a apresentar dificilmente será aceite pelo Tribunal Constitucional (TC), tendo em conta a lei e a jurisprudência. Desde 1995 que a lei do controlo da riqueza dos políticos e altos cargos públicos determina a livre consulta e divulgação daquelas declarações por qualquer pessoa, abrindo apenas uma excepção na publicitação desses dados em caso de “motivo relevante, designadamente interesses de terceiros”, decidida caso a caso pelo tribunal. E aqui, as decisões do TC apenas têm admitido segredo na parte relativa a familiares do declarante.

O acórdão mais significativo nesta matéria foi proferido pelos juízes do Palácio Ratton logo em 1996, um ano depois de a lei 4/83 ter mudado – e nesta matéria mudou completamente, pois durante os primeiros anos, o acesso àquelas declarações era bastante restrito e a sua divulgação ainda mais. Em Abril de 1996, um deputado não identificado pediu expressamente ao TC que não fosse autorizada a consulta pública, e portanto também não a divulgação, da sua declaração de rendimentos. “Tendo em conta que na declaração de rendimentos e património, que apresentei nesse Tribunal, todo o meu património consiste em locais onde resido com os meus familiares, o direito à vida privada, minha e dos meus, seria violado pela divulgação pública de tal declaração”, alegava.

O Tribunal considerou que não havia motivo relevante e indeferiu o pedido, considerando que os princípios subjacentes à lei do controlo da riqueza dos políticos “postulam a livre crítica da acção política e da acção pública em geral e a ‘transparência’ de actuação dos respectivos agentes”. E “conduzem a que possa haver aspectos da vida das pessoas, cobertos em geral pela ‘reserva da intimidade da vida privada’, que já não devam ser protegidos por essa mesma reserva, quanto estejam em causa titulares de cargos políticos ou equiparados”.

Assim, reza o acórdão 470/96: “esse direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada pode conhecer limites ou restrições específicas quanto aos titulares dessas funções, e em razão precisamente dessa sua qualidade”.

Para os juízes-conselheiros, aliás, não há razões específicas para impedir o conhecimento de bens como imóveis, carros, motos, barcos ou aviões, uma vez que estes são sujeitos a registo público e, como tal, susceptíveis de serem conhecidos por qualquer pessoa. Quanto aos rendimentos, consideraram mesmo que eles são “um elemento privilegiado para avaliar a situação patrimonial e económica do respectivo titular”, que é precisamente o objectivo da lei.  

Contas com terceiros

Situação diferente foi analisada pelo TC em 2010, num processo em que a vereadora de uma câmara municipal solicitou a não divulgação de contas bancárias que tinha em comum com familiares, considerando que o seu conhecimento poderia ser “susceptível de violar a reserva da vida privada de terceiros alheios ao cargo” que a obrigava à declaração. 

Nesse caso, a vereadora apenas pedia que não fosse divulgada a parte relativa a contas bancárias específicas: as que tinham as filhas menores como titulares e em que a autarca apenas tinha a autorização para as movimentar até que aquelas atingissem a maioridade, e uma outra cujos montantes eram integralmente pertencentes à sua mãe, mas de que ela era co-titular.

Mesmo assim, a decisão do TC não foi a de conceder o direito ao sigilo dessa parte da declaração, mas antes no sentido de convidar a autarca a corrigir a sua declaração sem descriminar aquelas contas bancárias. Tratavam-se, segundo os juízes, “de elementos que não integram o património do obrigado à apresentação da declaração” e, como tal, “não se encontram abrangidas pelo âmbito objectivo daquela declaração para efeitos do regime jurídico de controlo público dos titulares de cargos políticos”.

Estas são as únicas duas decisões sobre pedidos de reserva de declarações de rendimentos e património cujos acórdãos estão na página electrónica do TC e que se enquadram na versão actual da lei. Mas na primeira, os juízes conselheiros tiveram ainda de analisar uma outra questão que pode ser levantada pelos administradores da CGD, se levarem para a frente a sua intenção de pedirem sigilo até ao fim do mandato. É que o deputado em causa não se limitava a pedir a não divulgação da sua declaração, mas solicitava mesmo que ninguém a pudesse consultar.

A questão coloca-se porque a lei 25/95, que alterou a versão original da lei 4/83, trata a consulta e a divulgação das declarações em dois artigos diferentes (5.º e 6.º), embora só no segundo caso admita a possibilidade de o declarante pedir reserva. No entanto, o Tribunal Constitucional considerou ser possível fazer uma interpretação “ampliativa” e mesmo “correctiva” da lei, considerando que, se houvesse motivo relevante, a declaração poderia não ficar disponível para consulta pública.

“Se houvesse de deferir-se ao solicitado pelo requerente, tal significaria, que ficaria vedada, não apenas a divulgação, mas inclusivamente a consulta da declaração por ele apresentada em obediência ao disposto na Lei n.º 4/83 – assim se satisfazendo o pedido nos precisos termos em que ele vem formulado”. E só assim não aconteceu porque o Tribunal Constitucional considerou que não havia fundamento relevante para manter a declaração sob sigilo.

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