À esquerda, uma coisa (importante) mudou

A poucos dias da entrega do Orçamento, não surpreende que António Costa tente recentrar o PS. Um ano depois das legislativas, é à esquerda que se nota uma diferença.

A frase polémica de Mariana Mortágua pode ter merecido aplausos e sorrisos de uma plateia de socialistas, mas não apanhou António Costa desprevenido. Na extensa entrevista que nestes dois dias deu ao PÚBLICO, o primeiro-ministro e líder do PS decidiu traçar uma clara linha de demarcação: “Essa nem é a linguagem do PS, nem é a ordem de prioridades que temos.” É melhor relembrar a frase polémica de Mortágua, só para a termos presente: “A primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro.” Contexto: a nova sobretaxa de IMI — e as novas regras para a (falta de) sigilo fiscal.

Esta demarcação do chefe de Governo face ao Bloco (e também ao PCP) percorre os vários textos que aqui publicámos nestes dois dias, num momento muito particular do calendário político. Estamos a poucos dias do Orçamento do Estado para 2017, em plenas negociações entre os parceiros de maioria. E não é por acaso que António Costa aproveitou a oportunidade para dizer que o novo IMI será “equilibrado”, que não é “oportuno” taxar valores mobiliários, que a subida das pensões será “a possível”, que em 2017 não há aumentos para a função pública ou que é preciso aumentar impostos indirectos, porque “o país tem que fazer escolhas”. Leia-se: se há um acordo assinado para governar, ele tem um preço. Sobretudo se tivermos em conta que se aproxima outra difícil negociação com a Comissão Europeia.  

Mas mais curioso é ver como Bloco e PCP foram cautelosos na reacção a esta entrevista. Melhor dizendo, como foram silenciosos. Os dois novos parceiros de governação sabem que os tempos não são de protesto. Sabem o compromisso que assinaram em Novembro de 2015 e as consequências de uma crise. Mas há um outro dado que talvez faça mais diferença do que todos estes. 

Com as negociações dos orçamentos, com os grupos de trabalho (de que pouco ou nada sabemos até agora), PCP e Bloco têm pela primeira vez dados oficiais em cima da mesa. Leia-se: têm números para fazer contas, legislação para conhecer os limites, bases de dados para saber os universos.

Daqui a sensivelmente dez dias, quando chegar o Orçamento de 2017 que todos terão de votar favoravelmente, saberemos a que consenso é que chegaram — não só o que conseguiram, sobretudo o que não conseguiram, dadas as circunstâncias. 

Tudo isso faz diferença hoje — e seguramente mudará o PCP e Bloco. Não só daqui a uns dias, na votação do OE 2017, mas até quando voltarem à oposição. Um ano depois das legislativas, podemos com alguma segurança reconhecer isto. A esquerda à esquerda do PS está mais “pragmática”, como disse António Costa. Isso, sim, marca uma nova etapa na democracia portuguesa.

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