Quando a justiça esbarra na imunidade: casos que foram notícia

Fomos aos arquivos dos jornais e recordamos cinco histórias onde a imunidade diplomática teve o seu papel.

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Aeroporto de Lisboa terá o maior aumento Manuel Roberto/Arquivo

2003
O diplomata grego que agrediu um polícia

Aconteceu em Julho, na zona de embarque do aeroporto de Lisboa. Um membro da diplomacia grega em Portugal agrediu um agente da Polícia de Segurança Publica (PSP), noticiou então o PÚBLICO. De acordo com testemunhas, o diplomata estava na zona de embarque e parecia ter pressa em sair dali, dirigiu-se, por isso, ao corredor por onde entravam os passageiros para embarcar no avião e o agente da PSP que estava a controlar as entradas cortou-lhe o caminho, dizendo que não podia prosseguir. O indivíduo não gostou. Respondeu, em castelhano: “Posso, posso!” E depois de alguma insistência, deu uma cabeçada no nariz do polícia, que lhe deu voz de prisão, contou ainda uma testemunha do incidente.

Só então o diplomata tirou do bolso um cartão de identificação. Foi levado para o posto da PSP do aeroporto, mas saiu em liberdade, por gozar de imunidade diplomática. Quanto ao polícia, foi ao Hospital Curry Cabral para tratar os ferimentos ligeiros.

2004
O empresário com passaporte diplomático

Pierre Falcone, embaixador de Angola na UNESCO e negociante de armas francês, é detido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) mal chega ao aeroporto de Lisboa. Tinha um mandado de captura internacional pendente. Era procurado. Não fica muito tempo detido, mas é o suficiente para o fazer perder o avião que o levaria a Londres. O incómodo fica, contudo, por aí: é libertado pouco depois e segue viagem.

Perante a polémica que estala quando o caso é noticiado, com vários partidos a pedir ao Governo para explicar porque tinha Falcone, um homem procurado, sido libertado, o SEF explica: permitiu que Falcone seguisse viagem para Londres porque ele era portador de um passaporte diplomático, embaixador de Angola na UNESCO, e encontrava-se em trânsito. O então ministro da Administração Interna, António Figueiredo Lopes (PSD), declara nos dias seguintes o seu apoio à actuação do SEF neste caso. “Os serviços já informaram perfeitamente o que se passou”, comentou Figueiredo Lopes, o SEF cumpriu a lei.

2007
O embaixador acusado por engano

A história é contada pelo Expresso em Dezembro de 2007 com o título “Juíza esquece imunidade”. Breve resumo: uma juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa constituiu como arguido o então embaixador angolano, Assunção de Sousa dos Anjos, apesar de este gozar de imunidade diplomática.

O representante diplomático protestou, foi recebido pelo procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e pelos ministérios da Justiça e dos Negócios Estrangeiros. A magistrada acabou por suspender o processo, remetendo os autos ao Ministério Público para este se pronunciar. E este pronunciou-se. Dizendo o que diz a lei: os diplomatas acreditados em Portugal “não podem ser constituídos arguidos”. No centro do processo estava uma queixa apresentada pelo empresário português Manuel Lapas Correia contra o Estado angolano e alguns dos seus representantes por alegada falta de pagamento de uma transacção em 1996 (a empresa de Lapas Correia fornecera vários produtos às Forças Armadas, de alimentos a mobiliário).

2009
O embaixador que nunca foi acusado

Eram quatro os elementos da Embaixada da Moldávia em Lisboa, incluindo o então embaixador Mihail Carmerzan, que poderiam ter sido incluídos no rol de arguidos de uma rede de auxílio à imigração ilegal. Podiam, se não fosse a imunidade diplomática de que gozavam. “É uma loucura. Desminto tudo”, declarou o embaixador da altura, ao Expresso.

A procuradora titular do inquérito respeitou a Convenção de Viena, mas não deixou naquele ano de 2009 de extrair uma certidão integral, que fez seguir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros e para a Procuradoria-Geral da República moldava, onde falava em alegados “factos protagonizados pelos diplomatas, no interior da missão diplomática e em território da Moldávia”, segundo noticiava o PÚBLICO em 2009. A suposta líder da rede era uma tradutora oficial da embaixada (sem imunidade), que, essa sim, foi acusada.

Era na embaixada que eram autenticados documentos importantes para a legalização dos ilegais, como atestados e certidões de nascimento, de casamento e de divórcio, registos criminais, etc. A rede também tratava de arranjar, por exemplo, contratos de trabalho falsos. Cobrava cerca de 3000 euros aos imigrantes.
Já em 2011 o Tribunal Criminal de Lisboa condenou a tradutora a seis anos de prisão por auxílio à imigração ilegal, falsificação de documentos e corrupção. Outros 16 arguidos foram igualmente condenados (15 dos quais a penas de prisão suspensa, outro a pena efectiva e a expulsão do país, tal como a tradutora). O embaixador, relatou então o Expresso, foi demitido.

2012
A empregada doméstica que se queixou de um diplomata

A queixa foi apresentada no início de 2012, na PSP de Oeiras, e relatada pelo Sol. Uma cidadã marroquina contou que um diploma de Marrocos lhe retirou todos os documentos à chegada a Lisboa e que a manteve a trabalhar sem direito a descanso nem salário. Quando reclamou foi agredida.

Uma fonte da embaixada de Marrocos em Portugal contactada pelo jornal disse que a história de empregada era mentira, afirmou que o diplomata estava “completamente disponível para prestar esclarecimentos às autoridades” portuguesas (a empregada fez queixa dele e submeteu-se a perícias médicas), mas recordava que ele estava “protegido pela imunidade diplomática”.

Nesse mesmo ano, Joana Wrabetz, presidente do Observatório do Tráfico de Seres Humanos, explicava, em declarações ao Diário de Notícias, que ao observatório chegavam na altura vários casos de empregadas domésticas internas estrangeiras, a trabalhar em Portugal, perseguidas e abusadas pelos patrões. E ia mais longe: “Esses casos inscrevem-se na servidão doméstica, uma das formas de tráfico de seres humanos mais difíceis de identificar até pela fragilidade da situação das vítimas estrangeiras. Sabemos, por exemplo, que os diplomatas podem ‘importar’ empregadas domésticas e que, devido à sua imunidade diplomática, podem cometer abusos contra essas mulheres.”

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