O que aprendemos nestes 10 anos de Amplificasom

Olham para a música de peso de várias perspectivas. Impelem-nos à descoberta. A promotora portuense Amplificasom completa uma década, e vai celebrá-la este fim-de-semana no Hard Club, na sexta edição do Amplifest, encabeçada pela estreia nacional dos Neurosis.

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Ricardo Castelo\NFACTOS

Quando criou a Amplificasom com Jorge Bastos, em 2006, André Mendes não sabia muito bem o que estava a fazer. “No primeiro concerto nem sabia o que era um rider”, recorda. Não havia “qualquer tipo de expectativa, qualquer tipo de formação”, mas nada disto era uma brincadeira de rapazes. Era uma “necessidade”. “Como as bandas que tu queres ver não passam cá, pões mãos à obra.”

Assim foi, e entretanto já passaram dez anos, mais de 400 concertos, cinco edições de um festival insubstituível chamado Amplifest, que volta este fim-de-semana, numa sexta edição encabeçada pela estreia dos Neurosis em Portugal, e que resume a filosofia da promotora portuense Amplificasom: a aposta em música de peso e ruído versátil que filtra as neuroses e o negrume dos dias, sem se filiar a um só género; música que destabiliza convenções e impõe a descoberta. Do pós-metal e do hardcore à electrónica brutalista, de guitarras acústicas tonitruantes à música experimental.

O Amplifest pode ser a chancela da Amplificasom e o seu manifesto mais evidente – e isso vê-se pela adesão do público internacional, que este ano deverá bater recordes e chegar aos 50%-60% –, mas a história não começa nem acaba aí. Primeiro, nasceu um blogue. “A ideia era ter um sítio onde pudéssemos falar dos discos que ouvíamos e fazer uma agenda de concertos”, conta André Mendes. Estávamos em 2006. “Era a altura do pós-metal e do pós-rock instrumental, mas sempre tivemos gostos eclécticos. Antes e agora é a mesma forma de estar”, nota André, que desde 2012 dirige a promotora ao lado de Ângelo Tibério de Carvalho – e desde sempre sem apoios financeiros, em simultâneo com outros trabalhos full-time.

O primeiro concerto aconteceu passado uns meses, com os Enablers n’O Meu Mercedes É Maior Que o Teu. “De repente decido escrever ao agente deles e marcar o concerto”, diz André. E assim nasceu uma promotora. “Depois começou a ficar o bichinho… Acho que foi tudo por necessidade: via que as minhas bandas preferidas chegavam a Espanha e davam a volta.” Entretanto, marcar tours ibéricas também entrou para os planos. Trouxeram nomes como os Shellac, de Steve Albini (2010, Auditório de Serralves, antes de os vermos até à exaustão em todas as edições do Primavera Sound português), Chelsea Wolfe ou Wolves In The Throne Room.

Houve muitas estreias nacionais, muitas bandas dadas a conhecer em primeira mão – inclusive antes de desabrocharem na imprensa internacional e de conquistarem o mundo, como os Deafheaven, que estiveram no Hard Club em 2012, a abrir para Russian Circles, antes do (merecido) hype de 2013. Para Márcio Laranjeira, da vizinha-amiga-parceira Lovers & Lollypops, a Amplificasom funcionou como uma plataforma de descoberta, de aprendizagem. “O meu primeiro concerto da Amplificasom foi Pelican, em 2007, mas no blogue deles lembro-me de conhecer bandas como These Arms Are Snakes, Baroness ou Nadja. Ainda foram algumas bandas e alguns concertos descobertos através deles.”

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Ângelo Tibério de Carvalho e André Mendes, os responsáveis pela Amplificasom Ricardo Castelo\NFACTOS

E preencheu-se um vazio (no Porto, no país). “Sempre deram atenção a [alguma] música pesada que na altura já tinha uma boa base de seguidores, mas não havia ninguém – ou havia, mas sem a continuidade da Amplificasom – a programar e a falar sobre este lado da música pesada. À medida que foi crescendo, ampliou o seu alcance para a música pesada e negra executada das mais variadas formas. É malta que mete Converge, HHY & The Macumbas e Ben Frost no mesmo festival e que traz variedade a um espectro onde é fácil cair na monotonia”, resume Márcio.

Um festival singular

Contribuindo para um circuito nacional de concertos mais plural e vitaminado, a Amplificasom não fechou portas a outros. Colaborou e colabora com diversas salas e promotores (ZDB, RCA Club, Sonoscopia, Cave 45, Lovers & Lollypops, entre outros). Já agenciou concertos no Reverence Valada, Serralves em Festa, Paredes de Coura, FMM Sines ou, lá fora, no festival Roadburn, referência incontornável na música de peso. E investiu num roster com bandas portuguesas, acolhendo e exportando nomes como HHY & The Macumbas, Löbo e Process of Guilt.

Mas para André há um pré e um pós-concerto de Isis, feito em 2009 no Incrível Almadense e no Teatro Sá da Bandeira. “Trabalhámos com uma estrutura maior e percebemos que podíamos levar as coisas mais além.” E o mais além da Amplificasom foi o Amplifest. Logo nas primeiras edições percebemos que era um festival singular. Alinhamentos coerentes e sem gorduras. Nada de sobreposições de concertos, contrariando-se o consumo rápido e fragmentado que mina cada vez mais os festivais de música e a forma como olhamos para ela. Filmes, listening sessions exclusivas e conversas com jornalistas e com bandas (Amplitalks), que permitem quebrar barreiras entre o público e os artistas e reflectir sobre a música, bem como as actividades que as sustentam. Um festival sem bombardeamentos de acções promocionais, que têm ajudado a tornar tantos festivais em parques de diversões.

E, claro, um alinhamento desafiante. Recordemos 2014, quando vimos (e sentimos no corpo) na mesma noite o free jazz alucinante e voltaico de Peter Brötzmann, o levantamento percussivo dos Swans, a electrónica incandescente e punitiva de Ben Frost. Ou 2015, com o black metal aventureiro dos Altar of Plagues seguido da sessão de hipnose de William Basinski, que deu depois lugar à fúria desembestada e salvífica dos Converge (prova de resistência para mais tarde recordar).

Olhemos em frente, para esta sexta edição (aquecimento hoje no Cave 45 com Aluk Todolo e alongamentos na segunda, no Passos Manuel, com Steve Von Till e The Leaving). Temos o hardcore sísmico, numa fusão a quente com o black metal, dos Oathbreaker; o noise e a electrónica gangrenosos de Prurient; o drone-folk ascético, em namoro com o doom metal, de Anna von Hausswolff; o pós-rock exploratório dos Caspian; ou, amém, os telúricos Neurosis, uma das bandas mais relevantes e inventivas do metal, que há três décadas começaram a mexer na genética do género e a abri-lo a novos caminhos e heranças, intersectando-o com hardcore, folk ou música ambiental (e que levantarão o véu do novo disco, Fires Within Fires, domingo no Hard Club).

É um festival que tira o público da sua zona de conforto, e isso foi um dos factores que surpreendeu a madrilena Susana Calvín, que integra a crescente percentagem de estrangeiros (Brasil, Rússia, Israel, Espanha, Alemanha…) que vem marcando presença no Amplifest. Este ano será a sua terceira vez. “O Amplifest é um lugar perfeito para ver outras formas de fazer música, que para mim foram todo um mundo a descobrir”, revela. Para Márcio Laranjeira, a Amplificasom é “o exemplo do fazer bem, independentemente do tamanho do evento”. “Os artistas reconhecem isso e querem voltar a trabalhar com eles quando tocam cá”, refere. É o caso de Scott Kelly, dos Neurosis, que depois de dois concertos a solo em Portugal, cortesia da Amplificasom, escolheu o Amplifest para a estreia da sua banda em terras lusas. “Foi por causa do André [Mendes], que é um ser humano e um promotor excepcional”, conta ao Ípsilon.

Apesar de o Amplifest não ser um festival de metal, tem apostado, tal como a Amplificasom na sua actividade regular, em bandas que rejeitam as posturas misóginas, racistas e homofóbicas tantas vezes ligadas a este género e que o cruzam com outras coordenadas sonoras. Para Scott Kelly, isso é de louvar. “O Roadburn abraça os mesmos princípios, mas tirando esse caso nunca vi este tipo de atitude a ser posta em prática sob a direcção do criador do festival.” Susana Calvín: “Acho que o melhor caminho para mudar mentalidades fechadas é confrontar as pessoas com esta variedade e com bandas que rompem moldes.”

Elogios não faltam, público estrangeiro também não. Mas nem tudo é cor-de-rosa, e esta história só terá um final feliz se conseguirem apoios para as próximas edições. “O futuro do Amplifest passa por ter um apoio, um patrocínio. Dependemos exclusivamente da bilheteira”, assinala André Mendes. Não querem ficar reféns de marcas e de instituições, mas querem conseguir sobreviver e pagar aos amigos que os ajudam. “Este é o primeiro ano em que temos um apoio financeiro da Câmara Municipal do Porto. Longe de mim querer ser mal-agradecido, mas realmente é uma migalha.”

“A partir do momento em que é uma mais-valia para a cidade, a autarquia pode e deve apoiar. Tens pessoas a viajar para o Porto, a dormir nos hotéis, a comer nos restaurantes”, nota Márcio Laranjeira. A nível de apoios, o promotor da Lovers & Lollypops reconhece que a Amplificasom ainda é esquecida no contexto de promotoras independentes com trabalho e currículo reconhecidos. “Infelizmente algumas instituições ainda são muito quadradas em relação ao que vêem como cultura e na selecção que fazem para dar apoios ou não. E mesmo para as marcas há um público fiel e consumidor a quem podem chegar.”

Por enquanto, celebremos o presente e o que aprendemos nestes dez anos com a Amplificasom: a testar limites, a descobrir. É o que vamos voltar a fazer este fim-de-semana no Amplifest. Que venha mais uma década.

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