Um Dürer por um Bosch

Arte Antiga marca esta quarta-feira o Dia Internacional dos Museus com a abertura de uma nova exposição e uma pintura saída das colecções do Prado. Lisboa emprestou um tríptico de Bosch e Madrid "agradeceu" com um auto-retrato de Dürer. Sem sobressaltos - a troca é apenas temporária.

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Albrecht Dürer pintou este auto-retrato quando tinha 26 anos Cortesia: Museu do Prado

Um empréstimo excepcional paga-se com… Um empréstimo excepcional. É nesta lógica que o Museu Nacional de Arte Antiga expõe esta quarta-feira, precisamente no lugar onde costuma estar o tríptico das Tentações de Santo Antão, de Jheronymus Bosch (c. 1450-1516), um auto-retrato do grande pintor e gravador do Renascimento alemão Albrecht Dürer (1471-1528), que pertence ao Museu do Prado, em Madrid.

O Bosch viajou para a capital espanhola para integrar a exposição que esta pinacoteca lhe dedica nos 500 anos da sua morte (31 de Maio a 11 de Setembro) e, para compensar a falta que faz em Lisboa – é uma das peças mais importantes da colecção de Arte Antiga – o museu madrileno aceitou ceder pelo mesmo período uma das suas obras-primas. O auto-retrato de Dürer só regressará a casa quando o tríptico do mestre holandês estiver de volta, explica José Alberto Seabra Carvalho, director adjunto do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA).

“Nessa altura, quando todos em Lisboa puderem rever o Bosch [a partir de 28 de Setembro], o tríptico será a ‘obra em foco’ e nós vamos falar da investigação mais recente [uma equipa holandesa que fez o catálogo raisonné do pintor submeteu a obra a uma série de análises científicas] e da exposição de Madrid”, diz este historiador de arte, que esta quarta-feira ao meio-dia estará ao lado de Alejandro Vergara, conservador-chefe do departamento de pintura flamenga e das escolas do Norte do Museu do Prado, para apresentar a pintura de Dürer, “uma obra em que o Sul e o Norte se encontram".

Um artista, definitivamente

Pose elegante a três quartos, com o abraço apoiado em “L” e tendo atrás de si uma janela aberta sobre um vale atravessado por um rio. O artista representa-se com longos e encaracolados cabelos loiros, de barba, e ricamente vestido. Não lhe faltam sequer umas luvas, o que à época só por si era indicador de um estatuto social elevado. É um homem bonito, com um olhar desafiante, inquisitivo. Por baixo da janela, numa letra miudinha, está escrito: “1498 Pintado segundo a minha figura aos vinte e seis anos de idade, Albrecht Dürer AD”.

Aos 26 anos, Dürer, o filho de um ourives de origem húngara, dera já por terminada a sua formação básica, lê-se na folha de sala que contextualiza a obra. Com o pai aprendera a desenhar e a manejar o buril, com Michael Wolgemut, o seu professor, estreara-se na pintura. Oito anos antes da data firmada neste auto-retrato, o artista tinha viajado pela Alemanha, conhecendo diversos artistas, muitos deles experientes numa arte em que viria a destacar-se, a da gravura. Fizera também um périplo por Itália (1494 e 95), entrando em contacto com o trabalho de muitos dos pintores do Sul e copiando, por exemplo, gravuras de Antonio Pollaiuolo e Andrea Mantegna. Também executara já o seu primeiro auto-retrato a óleo (1493).

Uma das singularidades de Dürer é, precisamente, esta inclinação para a auto-representação, algo que faz com invulgar frequência e ainda mais invulgar qualidade, diz ao PÚBLICO Alejandro Vergara, lembrando que além dos três auto-retratos a óleo sobre madeira, faz inúmeros em desenho, em que aparece por vezes de forma muito “mais crua”, “rude”.

O primeiro em pintura, quando tem 22 anos, “é uma quase alegoria”, afirma Vergara, e o terceiro, aos 28, hoje na pinacoteca de Munique, “maravilhoso”, é “uma abordagem divinizada”. No meio fica este de Madrid, o “mais próximo da vida de todos-os-dias”.

"Dürer retrata-se como um gentleman, muito bem vestido, com um ar altivo, orgulhoso. Sabemos pouco sobre a sua personalidade – as suas cartas e os seus diários incluem sobretudo um registo frio do que se passa, com referências a factos e gastos numa ou noutra viagem – mas é certo que era um homem consciente do seu talento, muito provavelmente narcisista como a maioria dos artistas”, diz o conservador do Prado. Mas aqui, alerta o historiador de arte, o pintor, “uma das grandes figuras do Renascimento na Europa do Norte”, não se limita ao auto-elogio, usa a sua imagem com um propósito maior: “O seu objectivo, que o acompanha a vida toda, é elevar o estatuto da pintura na Alemanha. Ele não quer ser visto como um artesão, à maneira do que acontecia na Idade Média – ele é, e quer que o vejam assim, um artista. E faz tudo para que essa condição seja considerada importante, nobre.” Algo que parece ser já dado adquirido no Sul da Europa do seu tempo. “Não é por acaso que numa das suas cartas, de Itália, diz que vai sentir saudades do sol quando regressar à Alemanha. Não é do tempo que ele está a falar – é do reconhecimento que tem no Sul, da maneira como é tratado.” É Dürer, diz Vergara, quem escreve: “No Sul sou um artista, na Alemanha um parasita.”

Vergara e Seabra Carvalho juntam-se na chamada de atenção à simbiose que a pintura do Prado convoca. “Este auto-retrato é um snapshot do que Dürer está a tentar fazer – a figura ocupa praticamente toda a pintura, uma coisa muito italiana, mas a atenção à paisagem e a importância que é dada ao detalhe realístico são muito flamengas. Há nele um cocktail de influências”, diz o primeiro. “Ele encena tudo aquilo muito bem, com uma precisão nórdica e com um grande investimento na representação do carácter, na profundidade psicológica. Não está ali apenas um jovem loiro e vaidoso de olhar firme. Está ali um artista que se move no ambiente da pré-reforma e do erasmismo, com umas luvas à nobre que lhe permitem esconder as mãos, que provavelmente estariam sujas, queimadas, do seu trabalho de pintor e gravador”, acrescenta o segundo.

As viagens de Dürer a Itália – voltaria em 1507-1508 – e pela Flandres e os Países Baixos (1520-1521), fizeram dele um artista capaz de cruzar influências e de se interessar por uma multiplicidade de áreas do saber e da criação, algo que se tinha já manifestado no círculo elitista em que se movia na cidade onde nasceu e morreu, Nuremberga.

Lembra Seabra Carvalho que não foi apenas pintor e gravador – “o que já seria muitíssimo para alguém que trabalha com tamanha qualidade” -, foi também arquitecto, engenheiro e matemático, dominava a geometria e a álgebra, e chegou a escrever tratados sobre perspectiva ou a arte de desenhar letras. “Ele anda por todo o lado, é um intelectual que quer saber de tudo e que tende a fazer melhor do que os outros. Se alguém no Norte faz sombra a Leonardo [da Vinci, 1452-1519] é Dürer. É justo que ele seja um homem com uma imensa confiança no seu talento.” Uma confiança que se baseia na capacidade de fazer uma “síntese brilhantíssima” e original de dois mundos.

Quem for esta quarta-feira ao museu para “receber” o pintor alemão cuja obra poderá ser vista bem perto do seu São Jerónimo (1521) que faz parte da colecção de Arte Antiga, terá à disposição Obras em Reserva. O museu que não se vê, a exposição que reúne mais de 300 peças que estão por hábito afastadas do olhar dos visitantes. É com esta nova mostra que o MNAA integra a programação especial prevista para o Dia Internacional dos Museus, alargada a dezenas de espaços espalhados pelo país.

 

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