O “kirchnerismo” senta-se no banco dos réus

Cristina Kirchner foi formalmente acusada por ter lesado o Estado argentino. É a primeira acusação de vários casos que envolvem a ex-Presidente, que promete luta.

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Cristina Kirchner foi recebida como uma heroína depois de ter sido interrogada em tribunal Marcos Brindicci / Reuters

Acostumada à Casa Rosada, onde esteve oito anos como Presidente e quatro como primeira-dama, Cristina Kirchner terá agora de se habituar aos tribunais. A ex-Presidente argentina foi formalmente acusada, na passada sexta-feira, por ter autorizado uma operação financeira que terá lesado o Estado. É a primeira acusação de meia dezena de casos que envolvem Kirchner.

O juiz federal Claudio Bonadio acusou a ex-chefe de Estado pelo crime de “gestão indevida em prejuízo da administração pública”. Em causa está a suspeita de que Kirchner autorizou a venda de dólares a um preço inferior ao do mercado com o objectivo de manter a cotação do peso face ao dólar artificialmente baixa — e, com isso, beneficiar a campanha de Daniel Scioli, o candidato presidencial que apoiava, mas que acabou derrotado por Mauricio Macri, em Novembro.

Nos autos do processo, o juiz declara que Kirchner “fez uso de uma estrutura de poder que liderava devido ao seu cargo, para implementar uma operação que infringiu os cofres públicos”. “É impensável que uma operação financeira desta magnitude (…), que teria efeitos económicos e políticos claros num futuro imediato, tenha sido desenvolvida sem a aprovação expressa do mais alto nível de decisão económica e política do poder executivo nacional”, conclui Bonadio.

O juiz decidiu ainda congelar bens de Kirchner no valor de 15 milhões de pesos (900 mil euros). Uma condenação pode ditar uma pena máxima de seis anos de prisão, mas a imprensa argentina cita fontes das investigações que consideram improvável um desfecho nesse sentido.

Mas se Kirchner — que desde que abandonou a Presidência não tem qualquer cargo político que lhe garanta imunidade — pode escapar à prisão por este caso, há outros bem mais preocupantes para a líder argentina. A trama de investigações em torno da ex-Presidente, da família Kirchner e do seu círculo mais próximo parece não ter fim. A Justiça argentina abriu inquéritos que envolvem corrupção activa e passiva, falsificação de documentos e branqueamento de capitais.

Para além de Cristina Kirchner, os casos giram em torno do seu filho, Máximo, e dos empresários Lázaro Báez e Cristóbal López, alegadamente favorecidos em contratos públicos. Vídeos revelados em Março pelo Canal Trece mostram a contagem de milhões de dólares em notas pelo ex-contabilista dos Kirchner e pelo filho de Báez. No chamado caso Hotesur, a justiça investiga a potencial lavagem de mais de dez milhões de pesos entre 2010 e 2011, através da reserva de quartos de hóteis propriedade da família presidencial que geralmente estavam vazios.

“Os mecanismos foram postos em marcha e já não há ninguém que os possa parar, vão acabar por unir os processos pendentes e os Kirchner vão ter muitos problemas, quer o Governo goste ou não”, dizia um juiz federal ao El País.

Fora da ribalta desde que deixou a Casa Rosada, a 9 de Dezembro, foram os tribunais a fazer regressar Cristina Kirchner. Ela fê-lo e com força. Há um mês foi chamada a depor pelo juiz que agora a acusa. Milhares de pessoas concentraram-se às portas do tribunal de Buenos Aires onde a ex-Presidente era ouvida pelo juiz Bonadio.

No final do interrogatório, Kirchner dirigiu-se aos seus fiéis para assegurar que a postura de desafio que marcou os seus mandatos — desafio contra os seus adversários políticos, contra a justiça, contra os Estados Unidos, contra os “fundos-abutre”, contra as petrolíferas estrangeiras — não morreu com a derrota nas urnas.

“Quero que fiquem todos tranquilos, muito tranquilos. Podem interrogar-me 20 vezes mais, podem prender-me, mas não irão conseguir calar-me, impedir-me de dizer o que penso, de estar sempre com vocês. Tenho o povo comigo”, disse Kirchner, num discurso inflamado em que comparou a sua nova cruzada judicial ao golpe militar que derrubou o “peronismo”. “Estou certa de que se pudessem proibir a letra K de estar no alfabeto, o fariam”.

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