O tribunal de Dilma começa no Congresso brasileiro

Dia longo em Brasília, onde uma comissão especial de deputados se preparava para votar se a Presidente deve ou não ser alvo de um impeachment. Um muro foi erguido frente ao Congresso, para separar e evitar confrontos entre manifestantes.

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Jovair Arantes com a pintura a óleo representando a condenação à morte de Tiradentes atrás Ueslei Marcelino/Reuters
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Ex-ministro da Justiça de Dilma, José Eduardo Cardozo apresentou a defesa da Presidente Ueslei Marcelino/Reuters

Quem busca simbolismos sobre o momento que o Brasil atravessa por estes dias, só precisava de olhar dentro e fora do Congresso Nacional, em Brasília, esta segunda-feira.

Dentro: uma comissão especial de deputados preparava-se para votar – favoravelmente, segundo todas as previsões – um relatório defendendo um processo de impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff numa sala dominada por uma pintura a óleo representando a condenação à morte de Tiradentes, um herói nacional, considerado um mártir da luta pela independência do Brasil. Rodeado de soldados e religiosos, Tiradentes está diante do carrasco que o haveria de enforcar no dia 21 de Abril de 1792, depois de os seus planos de revolta popular serem denunciados aos colonos portugueses por delatores.

Fora: durante o fim-de-semana, um grupo de reclusos ergueu uma vedação com um quilómetro de comprimento à frente do Congresso para separar manifestantes contra e a favor do impeachment da Presidente e evitar confrontos entre eles. Não são grades, mas um autêntico muro, com dois metros de altura, impedindo que os dois lados sequer se vejam. No meio, haverá dois corredores, com 40 metros de largura, onde apenas poderão circular forças de segurança. O pico das manifestações é esperado no próximo fim-de-semana, quando o processo de impeachment [destituição] contra Dilma deverá ser discutido e votado no plenário da Câmara dos Deputados.

“Vindo da minha casa, deparei-me com o muro construído em frente ao Congresso", disse o presidente da comissão do impeachment, Rogério Rosso, do Partido Social Democrático (PSD), ao iniciar a sessão de segunda-feira. “Este não é o momento de dividirmos o país ainda mais”, pediu aos 65 deputados que formam a comissão, citando a Oração de S. Francisco de Assis (“Senhor, fazei-me um instrumento da vossa paz”). Mas ao longo da sessão, ele teve de acalmar os ânimos dos parlamentares, que interromperam repetidamente a defesa da Presidente Dilma, discutiram entre si e gritaram palavras de ordem – e o dia ainda mal tinha começado. Nada de surpreendente num Congresso onde em Dezembro, por causa do impeachment, deputados chegaram a agredir-se fisicamente.

Não parecia haver muitos indecisos na sala da comissão: quase todos os deputados tinham à sua frente um cartaz – ou verde (“Impeachment Já!”), ou vermelho (“Impeachment sem crime é golpe!”). Uma activista contra o impeachment distribuiu margaridas pelos deputados, mas nem todos aceitaram. “Agradeço a florzinha que o pessoal contra o ‘golpe’ me deu. Vou guardá-la para o dia do sepultamento deste Governo”, disse o deputado do Partido Social Cristão, Eduardo Bolsonaro.

Sabia-se que o dia ia ser longo – só não se sabia quão longo: o deputado relator da comissão, Jovair Arantes, e o procurador-geral do Estado, responsável pela defesa do Governo, iriam fazer alegações finais, vários deputados fizeram intervenções e os 25 líderes partidários com representação no Congresso tiveram direito a pronunciar-se. A votação, destinada a decidir se a Presidente Dilma Rousseff deve ou não ser alvo de um processo de impeachment no Congresso, está prevista para o final do dia em Brasília.

Futurologia

O presidente da comissão lembrou o processo de impeachment de 1992, que depôs Fernando Collor de Mello, para sublinhar que o momento actual não é  “uma repetição da História”. “Hoje, qualquer previsão de resultado é futurologia. Em 1992, era difícil errar o resultado”, disse.

O relator da comissão, Jovair Arantes, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que deu um parecer favorável à abertura de um processo de impeachment, falou a seguir, dizendo que “o povo brasileiro tem o direito de ver a denúncia contra a Presidente da República analisada pelo Senado. Se não houver crime, a Presidente será absolvida.” Arantes deu razão aos autores do pedido de impeachment, que alegam que Dilma cometeu ilegalidades ao decretar aumentos do orçamento de Estado sem autorização legislativa e ao recorrer ao crédito dos bancos estatais para financiar alguns dos seus programas públicos, as chamadas “pedaladas fiscais”. Arantes disse que a “contabilidade criativa” do Governo teve “efeitos nocivos” na condução económica e nas finanças do país: desemprego, inflação, subida dos juros, perda do poder de compra, perda de credibilidade, falência de empresas...

Arantes, que é um aliado de Eduardo Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados que accionou o processo de impeachment no Congresso, cumpriu o papel de acusação. “Não há mais clima para esse Governo. É um Governo arrogante, autoritário, que não aceita opiniões divergentes”, disse, sob o aplauso de deputados favoráveis ao impeachment. “Não tenham medo, senhores deputados. Essa é a hora. Que Deus nos ilumine.”

O procurador-geral do Estado e ex-ministro da Justiça de Dilma, José Eduardo Cardozo, apresentou a defesa da Presidente e criticou o relatório de Jovair Arantes: “A leitura isenta e apaixonada deste relatório é talvez a melhor defesa que a Presidente tem.” Cardozo disse que a legalidade dos aumentos orçamentais é defendida por vários juristas e que o Tribunal de Contas “aceitou isso durante anos” e só recentemente mudou o seu entendimento sobre o assunto. Quanto às “pedaladas fiscais”, o advogado disse que o relator “não consegue dizer qual foi” a ilegalidade cometida pela Presidente.

Segundo ele, o relatório corresponde a um raciocínio: “quando na dúvida, condena-se”. “É uma peça de absolvição histórica. Ele demonstra que não há crime mas apenas vontade política de afastar uma Presidente legitimamente eleita”, disse Cardozo, que foi interrompido algumas vezes pelos protestos de deputados. “É absurdo que um país marcado, talvez desde o seu descobrimento, por uma corrupção sistémica e estrutural, afaste uma presidente por uma questão de contabilidade.” O advogado concluiu: “Esse processo não deve ser chamado de impeachment. Esse processo deve ser chamado de golpe. Golpe de Abril de 2016.” Os deputados levantaram-se das cadeiras aos gritos de “Impeachment!” e “Não vai ter golpe!”.

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