“Camarada Xi, demita-se.” A carta que enerva o regime chinês

Um documento anónimo com fortes críticas ao Governo chinês que circulou na Internet gerou uma onda de repressão.

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Protesto durante a presença de Xi Jinping na Cimeira para a Segurança Nuclear em Washington Andrew Biraj / AFP

Apresentam-se como “militantes leais do Partido Comunista” e dirigem-se de forma respeitosa ao “camarada Xi Jinping”. Mas o resto do conteúdo de uma carta anónima divulgada em vários sites chineses no mês passado oferece um rosário de críticas à governação do Presidente e acaba por pedir a sua demissão. A forte reacção da liderança do partido único chinês mostra que Xi não vai refrear a perseguição aos seus críticos.

O impacto que a carta alcançou isoladamente não seria suficiente para fazer manchetes em vários jornais internacionais, mas a onda de repressão que se seguiu deixou muitos analistas preocupados. Mais de vinte pessoas foram detidas nos dias seguintes à publicação por terem simplesmente comentado a sua existência ou feito a sua partilha nas redes sociais.

A carta apareceu pela primeira vez, no início de Março, num site gerido por um activista dos direitos humanos. Uns dias depois, a página foi alvo de um ataque informático, explica o jornal britânico The Guardian. O documento foi depois divulgado no Wujie, um jornal online, mas horas depois da publicação já tinha sido retirado. A página foi encerrada e foram detidos elementos do seu corpo editorial.

A reacção à publicação de uma simples carta anónima em sites críticos do Governo de Pequim – e que passaria despercebida pela esmagadora maioria da população – “reflecte a paranóia que rodeia a liderança de Xi”, observa o professor da Universidade Chinesa de Hong Kong, Willy Lam, citado pelo Guardian.

A “paranóia” assumiu maiores proporções depois das revelações de dois jornalistas chineses exilados que acusaram as autoridades de intimidarem as suas famílias. Os pais e o irmão de Wen Yunchao, um blogger que vive actualmente em Nova Iorque, foram detidos para interrogatório pouco depois de ter partilhado no Twitter a carta. Chang Ping, um jornalista a morar na Alemanha, soube da detenção dos seus dois irmãos e irmã por ter feito um comentário na rádio Deutsche Welle sobre a carta anónima.

A dureza da resposta surpreendeu o analista Bill Bishop, que disse ao Christian Science Monitor que “a reacção dos serviços de segurança tornou isto uma história internacional”.

Censura reforçada

A repressão de vozes dissonantes da linha oficial do Partido Comunista é comum na China, mas desde a subida ao poder de Xi que os mecanismos de censura à liberdade de expressão e o controlo da imprensa se aprimoraram – o país ocupa o 176.º lugar em 180.º no ranking da organização Repórteres Sem Fronteiras. Um dos casos mais emblemáticos foi o de Ren Zhiqiang, um magnata do imobiliário apelidado de “Donald Trump chinês” pelas suas declarações polémicas. No final de Fevereiro, a sua conta na rede social Weibo (equivalente ao Twitter), onde é seguido por 37 milhões de pessoas, foi fechada pelas autoridades depois da publicação de um comentário crítico às políticas económicas do Governo.

No final do ano passado, cinco livreiros de Hong Kong desapareceram de forma misteriosa durante meses, até que se descobriu que tinham sido detidos e interrogados pela polícia chinesa. A antiga colónia britânica goza de certas liberdades, sobretudo nas áreas da educação e da imprensa, que são muito limitadas no território continental, ao abrigo do sistema “um país, dois sistemas”, e a ingerência de Pequim era encarada até agora como improvável.

Um dos livreiros negou que tenha sido levado à força para a China e explicou que testemunhou de livre vontade. Pelo menos um dos homens está acusado de vender e distribuir livros críticos da liderança do Partido Comunista, segundo a Reuters.

Para além da perseguição aos críticos do regime, Xi Jinping quer igualmente apertar o controlo sobre a imprensa estatal. Em Fevereiro, o próprio Presidente emitiu directivas acerca da forma como os órgãos de comunicação devem tratar a actualidade que não deixam espaço para muitas ambiguidades. “Todos os órgãos geridos pelo partido devem trabalhar para comunicar a vontade e as propostas do partido e proteger a sua autoridade e unidade”, afirmou Xi.

Mesmo para uma imprensa habituada às fortes limitações impostas pela liderança do partido, instruções deste tipo foram vistas com alguma apreensão. O editor de um jornal de Cantão apresentou recentemente a sua demissão por discordar das novas directivas. “Era quase uma regra não escrita durante este período que não existe um controlo total ou uma proibição de desacordo com a liderança do partido”, diz ao Financial Times o professor e especialista em media da Universidade de Hong Kong, David Bandurski.

Muitos vêem no aumento da repressão operado por Xi um reflexo das inseguranças que vão tomando conta do regime, numa altura em que a performance económica chinesa – baluarte do estatuto de potência mundial alcançado na última década – está em queda. Na carta que motivou o mais recente episódio, são elencadas várias críticas à governação de Xi, lembrando quase um relatório de avaliação escolar.

Apesar de os autores se apresentarem como militantes comunistas, há dúvidas quanto à origem da carta, podendo enquadrar-se numa luta interna pelo poder ou numa crítica proveniente do exterior. O que parece ser certo, diz Willy Lam, é que as críticas reflectem preocupações partilhadas por parte da elite política em Pequim em relação à forma de governo de Xi. “No processo de concentrar todo este poder, ele fez vários inimigos, mais do que os seus predecessores”, diz ao Guardian.

Da centralização do poder no Presidente, passando pela gestão económica que criou “instabilidade no mercado bolsista e imobiliário”, até à subordinação da campanha anti-corrupção a uma luta pelo poder, a conclusão é só uma: “Camarada Xi Jinping, sentimos que não possui as capacidades para liderar o partido e a nação rumo ao futuro.”

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