Londres era uma cidade aborrecida, depois chegaram os Parkinsons

Entre 2000 e 2003 levaram a loucura a Londres. Um documentário realizado pela britânica Caroline Richards com imagens da época, gravadas por câmaras que passavam de mão em mão, conta a ascensão e queda da banda. A Long Way to Nowhere estreia esta sexta-feira no Cineclube de Faro.

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Caroline Richards viu o primeiro concerto dos Parkinsons, no clube londrino Hope and Anchor, a 13 de Setembro de 2001, dois dias após os ataques terroristas de Nova Iorque. Lembra-se de que a atmosfera na cidade era de uma tensão extrema naquela semana, as pessoas andavam nervosas e um pouco loucas, mas nem isso explica o que viu naquela noite.

“Fiquei chocada. Era como uma grande festa, mas não havia regras”, recorda ela. “Todos estavam ao mesmo nível, músicos e audiência. Não havia uma barreira entre o palco e o público. Uns tocavam, outros não, mas estavam todos misturados. Mas a música era muito boa. De repente, vi que Afonso [o vocalista] tinha sangue na cara. Era sangue verdadeiro, por ter batido com a cabeça na bateria. Uma rapariga avançou para o palco e tirou as calças ao Afonso. A certa altura, ele rebolava no chão, nu e coberto de sangue. A bateria estava desfeita. A audiência parecia enlouquecida. Quando olhei para a amiga que me acompanhava, ela tinha tirado a t-shirt. Felizmente tinha soutien…”

Essa noite mudou a sua vida, admite hoje Caroline. Passou a seguir os Parkinsons para todo o lado, fotografando e filmando, registando como podia o delírio daqueles anos irrepetíveis. A própria paixão pela fotografia e o cinema nasceu ali. “Eles tocaram a vida de tanta gente”, diz Caroline. “Inspiraram muitas pessoas a fazer fotografia, ou outras formas de expressão. Inspiraram-me a mim a fazer cinema”.

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A Long Way to Nowhere estreia-se hoje no Cineclube de Faro, às 21h30. A seguir à sessão os Parkinsons actuam ao vivo

Nesse ano e no seguinte, os Parkinsons tornaram-se numa das bandas mais famosas de Londres. Os seus concertos estavam superlotados, chegavam a vender-se bilhetes por fortunas no mercado negro, faziam primeiras páginas na imprensa musical, mereceram artigos nos jornais de referência, eram perseguidos por promotores, agentes e editores, provocavam a inveja e tentativas de imitação de todas as bandas britânicas, andavam na boca de toda a gente.

Ninguém percebe como é que isto aconteceu, e de forma tão rápida e descontrolada. Muito menos os três miúdos que no final do milénio se fartaram da vida aborrecida de Coimbra e partiram para Londres, em busca do que pensavam ser a capital do punk.

Os rapazes e o tédio
Victor Silveira, conhecido como Victor Torpedo (ou Vitinho), já tinha alguma experiência musical. Era guitarrista dos Tédio Boys, banda que chegou a tocar nos EUA e se tornou conhecida em Coimbra pelos espectáculos extravagantes na rua, ou na “Queima das Fitas, que acabavam com os músicos todos na esquadra, em consequência dos seus alegados actos provocatórios - dos quais o mais grave seria a mania de se despirem.

Os Tédio Boys (cujo nome já continha um pedido de socorro pelo que era a vida de um jovem em Coimbra), inspiraram muitas bandas, e das suas fileiras saíram fenómenos artísticos interessantes, como os d3ö, os  Bunnyranch ou o Legendary Tiger Man, de Paulo Furtado.

O baixista Pedro Chau, cerca de dois anos mais novo que Victor, via-o nos Tédio Boys e sonhava também fazer parte de um grupo tão insurrecto e provocador, onde pudesse tocar a música de que gostava: seguramente mais Ramones do que fado de Coimbra, mais CBGB do que Queima das Fitas. Quando Torpedo lhe propôs integrar o seu novo projecto, não hesitou.

Os Tédio Boys extinguiram-se, e Victor imaginou uma banda punk para tentar a sorte nos EUA. O plano incluía uma prévia estadia em Londres, para ganhar algum dinheiro. Escolheram um nome (que a imprensa britânica haveria de elogiar como de “desconcertante mau gosto”), e só lhes faltava um vocalista.

Só podia ser um: Afonso, que nunca tinham ouvido cantar. Que importância tinha isso? Afonso, pela sua “pinta, rebeldia, loucura, carisma e uma certa arrogância”, era a figura que queriam para os Parkinsons.

“Quem tem paixão pela arte é nómada”, explica agora Victor, sentado com Pedro no café Académico, na Praça da República em Coimbra. “Eu sempre quis sair daqui, conhecer outros sítios. Londres era o sítio óbvio para onde ir. Era a capital do rock, do punk. Muita gente viajava para lá, como hoje se vai para Nashville, por causa daquilo que imaginam sobre a cidade”.

Londres era também para Victor e Pedro uma cidade imaginária. Os clubes, as bandas punk, os concertos dos Sex Pistols, dos Clash, era a energia, a crueza, a autenticidade desse mundo que os atraía.

Quando chegaram, em 2000, Afonso (aka Al Zheimer) já lá estava há um ano, suficiente para que a sua reputação se tivesse espalhado nos meios nocturnos.

Talvez porque o primeiro choque com a cidade tenha sido a decepção, em lugar do efeito de esmagamento que poderia ter acontecido, houve uma atitude de incivilidade perversa. Afonso já ia por esse caminho, e os outros logo se lhe juntaram. Antes de se terem tornado conhecidos como músicos, já o eram como moinantes nos antros mais mal-afamados de Londres. Durante seis meses, não conseguiram um concerto, mas construíram uma reputação que os levaria longe.

“Quando chegámos, Londres era tenebroso”, conta Victor. “Apanhámos a onda do New Glam, género Velvet Goldmine, e um renascimento do britpop. Bandas como os Suede, Placebo, Helicopter”. O punk tinha morrido há muito. O que predominava era um estilo amaneirado e artificial que abominavam.

É claro que “havia sempre a cena de garagem, os clubes mais subterrâneos, onde tudo era mais interessante”, lembra Pedro. Foi por aí que circularam, exibindo o comportamento que já os caracterizava em Coimbra, catalisado pela excitação de estarem finalmente em Londres, livres e sozinhos. “Sentíamos uma energia imparável”, diz Pedro.  “Dançávamos, despíamo-nos, atirávamos coisas, mordíamos os pés das pessoas…” descreve Victor. “Se fizéssemos aquelas coisas agora seríamos presos.  Havia muito mais liberdade na altura, antes do 11 de Setembro”.

Viviam em dois quartos de uma espelunca em Queens Crescent, Kentish Town, a mais degradada zona de Camden, dormindo dois em cada cama. Alugaram o tugúrio por 20 libras semanais a John Weeks, um velho alcoólico e toxicodependente que conheceram no Marathon, uma das piores catacumbas de Londres.

“Era uma casa de kebabs, com um esconderijo nas traseiras onde tocavam versões de Elvis à guitarra”, lembra Pedro. “Weeks tinha aspirações a músico, foi hippie, esteve em concertos de Jimi Hendrix”.

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Quem assistia aos concertos vinha contar prodígios dignos dos melhores anos dos Sex Pistols.

A casa tinha latas vazias e queimadas pelo chão, seringas usadas nas gavetas. “A sala, onde Weeks dormia, parecia uma instalação de arte contemporânea”, diz Victor.

Viviam ali porque não tinham dinheiro para mais. A banda estava formada, com Afonso a cantar e o britânico Chris Low na bateria, mas não conseguiam um “gig”, nem fazer chegar a ninguém influente a cassete que traziam gravada. Até que Chris os apresentou a um amigo que conhecia alguém numa agência de Management, a Interceptor. Dave Barnett, da agência, foi vê-los no primeiro concerto, organizado por um promotor conhecido de uns amigos portugueses.

Não foi a música, mas a reputação de mau comportamento que os levou até ali. Mas quando o primeiro concerto foi visto por agentes e promotores de espectáculos, a carreira dos Parkinsons levantou voo. Começaram a ter concertos em clubes, a fazer tournées com outras bandas, a participar em festivais. Gravaram um disco: A Long Way to Nowhere.

Em pouco tempo, tornaram-se numa das bandas mais conhecidas, pelos melhores e os piores motivos. Quem assistia aos concertos vinha contar coisas incríveis, façanhas e prodígios dignos dos melhores anos dos Sex Pistols. A lenda passava de boca em boca. Eles lançavam cerveja e objectos sobre o público, destruíam os instrumentos e o equipamento, e principalmente despiam-se por completo, em estrebuchos demenciais. E o público fazia o mesmo.

A imprensa descobriu rapidamente os Parkinsons e colocou-os nos píncaros. A popular revista NME (New Musical Express) fazia capa regularmente com Afonso, publicava entrevistas e críticas dos concertos. Os títulos eram bombásticos. “A Banda mais perigosa do momento”, ou “Voltou o tempo da excitação”. Era como se Londres, entediada com as novas e artificiosas tendências da musica pop, tivesse despertado para a vida com os Parkinsons.

“Londres tinha coisas muito pretensiosas, muito artificiais”, lembra Pedro. “O Glam era pomposo, uma espécie de strip”, diz Victor. “Nós éramos pornográficos. Despíamos tudo. As pessoas de repente viam ali uma matilha que não tinha farda”.

“Os Parkinsons foram a primeira banda a trazer excitação a Londres, em muitos anos”, diz Caroline, que se tornou numa das suas fãs. “Eles eram os melhores. Afonso era um performer genial. Ao nível de Iggy Pop, ou melhor”.

Ninguém percebia como e de onde tinham surgido aqueles loucos. O facto de serem portugueses acirrava ainda mais o fascínio dos jovens londrinos, que se viam transportados para os anos mais alucinados do movimento punk. “Os Parkinsons são a experiência mais próxima que se pode ter de um dos concertos iniciais dos Sex Pistols, nos anos 70”, escreveu um jornal.

Era como se Victor, Pedro e Afonso tivessem tornado realidade a cidade que traziam na sua imaginação. A Londres do punk revivia pelas suas mãos. “Eles eram autênticos”, diz Caroline. “Eram realmente perigosos. Afonso estava sempre a rodar o microfone, e nunca se sabia para onde o iria atirar. Era preciso ter cuidado. Algumas pessoas colocavam-se à distância, com medo. Sentia-se o misto de medo e excitação que uma criança experimente ao ver um filme de terror. Eles atiravam permanentemente cerveja para cima das pessoas. Isso fazia com que se consumisse muita cerveja, o que agradava aos proprietários dos clubes. Ao mesmo tempo temiam pelos estragos, porque Afonso e Victor partiam coisas, agarravam-se aos holofotes, que por vezes explodiam”. Uma vez, Victor pendurou-se no sistema de luzes, fazendo cair tudo no palco. De outra vez partiu as pernas. Noutras a polícia interrompia o espectáculo, prendendo as pessoas, obrigando-as a vestir as t-shirts ou as cuecas, ou levando-as a fugir da sala.

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Eles lançavam cerveja e objectos sobre o público, destruíam os instrumentos e o equipamento, e despiam-se por completo, em estrebuchos demenciais. E o público fazia o mesmo.

O ambiente era de tal ordem, que havia sempre algo a correr mal nos concertos. Logo num dos primeiros, no clube Cargo, onde havia inúmeros jornalistas, críticos e promotores na audiência, criou-se uma hostilidade com o técnico de som, cuja atitude arrogante e paternalista desagradou desde o início a Victor. Logo nas primeiras músicas, o som de palco falhou. A seguir foi o da guitarra. No meio da canção, Afonso gritava ao microfone: “There’s no fucking power!”, e segurando o microfone pelo cabo, batia com ele violentamente no chão, com grande estrondo. “Turn on the fucking stagesound!”, gritava Victor, que acabou por se dirigir à cabine do técnico de som e, segundo este, agredi-lo à cabeçada. Na música seguinte, um corpulento elemento da segurança entrou no palco e desata aos murros a Victor. Os músicos largam os instrumentos e atiram-se ao segurança. Excepto o baterista, que continua a tocar enquanto a pancadaria evolui no palco. Chega outro segurança. Raparigas saltam para o palco e cobrem-nos de pontapés. Os seguranças lançam sprays nos olhos de toda a gente. Victor arranca o boné a um deles, que responde com um pontapé directo na barriga. O baterista nunca pára de tocar.

“O que teria sido o fim de qualquer banda, para os Parkinsons foi um êxito”, diz Caroline. Os telefones nunca mais pararam de tocar. Eram convites para concertos, para tournées. Uma delas no Japão, que seria a maior que jamais realizada por uma banda ocidental.

Os jornais faziam títulos delirantes. “Vão vê-los, antes que sejam presos!”, dizia um. Outros, embriagados pelo próprio mito que criavam, não se coibiam de exagerar, ou inventar. “Diziam que tocavam todos nus, o que não era verdade. Só Victor e Afonso se despiam”, conta Caroline. “Diziam que defecavam em palco, e que rebolavam no chão cobertos de excrementos. Que defecavam na boca uns dos outros. Que urinavam em cima da assistência. Ridículo. Nada disto aconteceu. Talvez tivessem por vezes urinado no palco, só porque não queriam perder tempo a ir à casa de banho”.

Victor não acha sequer que houvesse violência nos concertos. “Nós apenas respondíamos. Quando havia elementos da audiência a cuspir em cima de nós, atirávamos-lhes com cerveja”.

A interacção com o público era intensa, no bom e no mau sentido. As pessoas dançavam e despiam-se, atiravam cerveja, ajudavam a partir os instrumentos. É verdade que por vezes batiam nos próprios músicos. “Quando viam que eles estavam a ser agredidos, a maior parte das pessoas vinha defendê-los”, conta Caroline. “A multidão ficava por vezes mais enfurecida do que eles. Era protectora. Eles vieram de Portugal, são nossos convidados. Além disso, em Londres não havia nada, ele trouxeram algo de novo. São os nossos salvadores. Como se atrevem a tratá-los dessa maneira?”

A lenda agigantou-se. O êxito foi mais rápido do que a capacidade de o assimilar, e os problemas começaram por aí. No próprio interior da banda. A loucura durou dois anos, ou nem isso. “O Afonso começou a bater mal”, diz Pedro. “Não estava preparado psicologicamente. Depois dos concertos, tinha explosões de violência. E eu também lidei mal com a situação, por ser tão rápido”.

Não é fácil determinar a altura em que as coisas começaram a correr mal. Houve um momento de azar, diz Caroline. O concerto no festival do clube ICA, durante as cerimónias do Jubiléu Dourado da Rainha Isabel II, em 2002. Era um festival de quatro dias e muitas bandas, num clube situado ao lado do palácio de Buckingham. Os pósteres do evento ostentavam a fotografia de Afonso nu, agarrando e esticando o pénis. Estavam afixados nos muros do palácio, mas a polícia mandou-os retirar.

No festival estavam presentes os principais jornalistas, promotores e editores musicais do Reino Unido. Era a grande oportunidade de uma banda ser descoberta pelas editoras mainstream, e catapultada para o êxito mundial.

Por sorte, os Parkinsons tocaram no dia do grande cortejo da rainha. Mas quando interpretavam a segunda música, foi visto um fumo esquisito a sair do palácio. A polícia temeu um ataque terrorista e mandou interromper o concerto. Quando as luzes se acenderam e o som foi desligado, Victor ainda conseguiu agarrar num microfone para gritar: “Há uma bomba na sala! Saiam!”

Tudo desatou a fugir, a começar pelos jornalistas e editores, que não mais voltaram, mesmo quando a normalidade foi reposta e o concerto continuou. Diz-se que foi uma das melhores actuações dos Parkinsons. Afonso foi levado no ar pela multidão, como se fosse ele o monarca. Mas já não estava lá ninguém influente para ouvir, e a banda que teve atenção em todas as revistas foram os Libertines, uma imitação britânica e menor dos Parkinsons.

A crise terá começado aí. O triunfo mundial não chegava, como seria lógico que acontecesse, e os jovens de Coimbra ressentiram-se. “Eles tinham vido para cá sem expectativas, só para se divertirem”, diz Caroline. “Mas disseram-lhes que podiam ser famosos, ganhar muito dinheiro. Quando isso não aconteceu, é normal que perguntassem porquê. Será porque nos despíamos? Será que a música não é boa? Afonso começou a pensar que era por causa dele”.

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O êxito foi mais rápido do que a capacidade de o assimilar, e os problemas começaram por aí. No próprio interior da banda. A loucura durou dois anos, ou nem isso.

Victor considera hoje normal o que aconteceu. “A imprensa britânica funciona assim. Promovem rapidamente as bandas, e depois deixam-nas cair. Hoje em dia, uma banda tem dois anos para ter êxito global. Se não tem, nunca mais ninguém lhe pega. Hoje seriam impossíveis fenómenos como o dos U2, os Clash ou os Rolling Stones”.

A verdade é que, a partir de certa altura, principalmente desde que Afonso deixou a banda, ninguém mais convidou os Parkinsons. Uma segunda tournée no Japão foi cancelada. “Até uma editora punk nos recusou”, recorda Pedro.

Caroline, que entretanto realizou um documentário sobre os Parkinsons, pensa que eles não souberam fazer o jogo dos media, deixarem-se domesticar, quando isso era necessário para a promoção comercial.

Victor não se arrepende disso. “Nós sempre fomos honestos connosco próprios. Quando o agente nos pedia para fazer sessões com roupas de designers de moda, recusávamos. E quando ele não nos deixava fazer concertos em espeluncas punk, nos íamos com outro nome, os Pork and Cheese Boys”.

Apesar de todo o êxito, os Parkinsons nunca fizeram dinheiro. O que ganhavam ia para as despesas do que destruíam. Nunca conseguiram deixar a casa de John Weeks. E quando terminaram o contrato com a agência, tudo a que tiveram direito foi um caixote cheio de microfones partidos.

Victor e Pedro vivem hoje em Coimbra e têm outros projectos musicais. Afonso ficou em Londres, onde trabalha num armazém.

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