O ano em que tudo mudou

2015 foi um ano cheio na política portuguesa, onde tudo passou a acontecer de modo diferente. Acabaram os consensos de regime e surgiram inesperadas alianças partidárias.

Se há um ano lhe dissessem que Pedro Passos Coelho ganhava as eleições legislativas de 2015 e que António Costa as perderia, acreditava? E se lhe acrescentassem que Passos tomaria posse como primeiro-ministro para, passados 12 dias, cair no Parlamento perante uma moção de rejeição do programa de Governo apresentada pelo PS e aprovada com o voto favorável do BE, do PCP e do PEV, daria uma gargalhada de incredulidade? E se lhe assegurassem que horas antes da votação o PS assinou com o BE, o PCP e o PEV, acordos bilaterais, abriria a boca de espanto? E se lhe avançassem em seguida que, apesar de o PS ser o segundo partido no ranking eleitoral, Costa seria empossado primeiro-ministro e o seu programa de Governo salvo no hemiciclo pelo BE, pelo PCP e pelo PEV, da moção de rejeição apresentada pelo PSD e pelo CDS, escangalhava-se a rir?

Pois é. Sem que ninguém sequer imaginasse possível, 2015 foi um ano cheio no domínio da política e nem as mais ousadas previsões conseguiram antecipar a reviravolta que o país viveu. Uma reviravolta que não é apenas formal e reduzível a jogos partidários e parlamentares, representa um corte real com uma maneira de fazer política e uma alteração estrutural no modelo de funcionamento do sistema político português.

Ruptura de sistema
De um momento para outro, a forma de funcionar da política institucional mudou. Há quem atribua a viragem a uma necessidade de sobrevivência política e à fome de poder do líder do PS. Mas a facilidade com que Costa o fez indicia que houve uma ruptura mais profunda e que o secretário-geral dos socialistas apenas surfou a onda que já estava em formação. Isto é, que a radicalização à direita que representou a governação do Governo conjunto do PSD e CDS, provocou a resposta à esquerda e abriu espaço a uma mudança no PS que possibilitou o entendimento deste partido com as formações da extrema-esquerda parlamentar.

O facto é que há um clima de confronto político esquerda-direita inédito em Portugal, já que não é comparável ao ambiente do Verão Quente de 1975, nem ao PREC [Período Revolucionário em Curso] que se viveu após o 11 de Março e que terminou a 25 de Novembro de 1975. Hoje, a democracia está estabelecida e o regime vive sem tutela militar. O embate entre esquerda e direita não tem sido sequer feito na rua, à força de manifestações. Todo o combate se tem processado no plano institucional, ao nível do domínio dos órgãos de soberania.

E nesse plano a ruptura esquerda/direita é tão plena que se reflectiu mesmo ao nível da eleição dos representantes da Assembleia da República no Conselho de Estado. O PS rejeitou as listas conjuntas que espelhavam o consenso de regime com o PSD e o presidente dos socialistas, Carlos César, foi o primeiro nome da proposta da esquerda, seguindo-se Francisco Louçã pelo BE e Domingos Abrantes pelo PCP.

É verdade que o peso político real do Conselho de Estado é nenhum. E que este órgão é simbólico. Nasceu do fim do Conselho da Revolução, assim como o Tribunal Constitucional, mas se este órgão tem poder fiscalizador, o Conselho de Estado tem como função aconselhar o Presidente da República. Nalguns casos, como a dissolução da Assembleia da República, tem que ser obrigatoriamente ouvido, mas o seu parecer é sempre indicativo e nunca vinculativo.

A mudança no sistema político foi perceptível com o resultado eleitoral que surpreendeu o país, apesar de as sondagens a apontarem desde cerca de um mês antes das legislativas. A coligação Portugal à Frente ganhou com 38,8%, Mas não obteve a maioria absoluta, o que permitiu a António Costa, cujo PS teve 32,4%, tentar e forçar uma aliança à esquerda com o BE, que conquistou o terceiro lugar com uns surpreendentes 10,2%, o PCP e o PEV, que coligados na CDU obtiveram 8,3%.

Passos toma posse a 30 de Outubro como primeiro-ministro para chefiar o XX Governo que durou 12 dias. Caiu a 10 de Novembro, ao ver aprovada pelo Parlamento a moção de rejeição apresentada pelo PS e recebendo o voto favorável do BE, do PCP e do PEV. Costa atinge o seu objectivo de ser primeiro-ministro tomando posse a 26 de Novembro, depois do Presidente ter tentado de todas as formas resistir a que fosse formado um Governo à esquerda com o apoio de partidos anti Europa e anti Nato.

Cavaco Silva procurou, por várias vezes, que fosse feito um acordo entre os partidos do arco da governação, ou seja, PSD, PS e CDS, mas sem êxito. Aliás, querendo influenciar uma decisão, o Presidente procedeu a uma série de audiências antes de dar posse a António Costa, adiando a investidura do actual primeiro-ministro e prolongando um processo, que se arrastou quase três meses, criando na população um desgaste com eleições e com política, que está a prejudicar o impacto e o interesse pelas presidenciais que se realização a 24 de Janeiro.

Romper consensos
O líder do PS emerge como figura política do ano ao abrir e ao traçar um caminho político institucional novo. Rompendo com o consenso de regime que se mantinha há 40 anos, um consenso constituído primeiro em torno da normalização do regime pós-PREC e do padrão constitucional sucessivamente revisto. Depois, também a partir de 1986, em torno da construção do Portugal europeu e integrado na Comunidade Económica Europeia, União Europeia a partir de 1 de Novembro de 1993, e do Tratado de Maastricht.

Ao longo do ano e logo em 2014, ao iniciar o processo que levaria ao afastamento de António José Seguro da liderança do PS e à sua eleição como secretário-geral, António Costa foi dizendo que não se revia nesse consenso político que caracterizara a política em Portugal e que considerava que ele não era operacional.

Daí que nos seus documentos programáticos, quer congressuais quer eleitorais, tenha afirmado claramente que para ele não havia partidos de primeira e de segunda e que tinha como objectivo acabar com a estigmatização política dos partidos parlamentares à esquerda do PS: BE, PCP e PEV.

Então, a opinião publicada, ou seja, os analistas e comentadores políticos, bem como os jornalistas, não o levaram a sério nesta sua intenção. Mesmo quando o questionavam sobre o tema, nunca exploraram até às últimas consequências o que esta disponibilidade para abrir diálogo à esquerda queria de facto dizer e até onde poderia conduzir.

Quando se viu perder eleições e apenas com 86 deputados (em 2001 tinha tido 74), Costa olhou em volta e avançou para abrir um caminho até então nunca realmente tentado, um acordo à esquerda. Mas ao nível do que é a mudança de regime não basta a disponibilidade de António Costa para fazer história, ou segundo outras análises, a sua vontade de ser poder a todo o custo. Há um factor decisivo: a disponibilidade do PCP para permitir que o PS seja Governo.

Esquerda disponível
O momento mágico dessa junção de vontades deu-se na verbalização pelo secretário-geral dos comunistas portugueses, Jerónimo de Sousa, da disponibilidade para este partido deixar viver parlamentarmente o Governo Costa com o objectivo assumido de afastar a direita do poder e, com o seu voto favorável, apoiar a aprovação de legislação que reponha os rendimentos dos trabalhadores cortados pelas medidas de austeridade do anterior executivo.

Assim, e depois de ter sido ultrapassado pelo BE e pelo CDS em número de deputados, ainda que a CDU tenha ganho mais um mandato parlamentar, num total de 17, para obter os seus objectivos estratégicos, o PCP alterou a sua posição táctica e estendeu a passadeira vermelha a Costa. E até o PEV, que ocupa dois dos mandatos conquistados pela CDU ganhou o protagonismo de assinar um acordo com o PS.

Determinante para a solução de Governo do PS com apoio à esquerda no Parlamento foi a anuência do BE. Aliás, a forma como o Bloco de Esquerda deu a volta por cima é um dos acontecimentos políticos do ano. Depois de em Novembro de 2014 ter saído dividido do Congresso e com uma solução de liderança fragilizada que apostava numa direcção colegial e em manter Catarina Martins como porta-voz, o Bloco recuperou eleitoralmente, transformando-se no terceiro partido e mais que duplicando o número de deputados passando de 8 para 19.

Um sucesso eleitoral que foi fruto da radical mudança de atitude mediática de Catarina Martins, mas que beneficiou também do que pode ser chamado de “triple M” - Martins/Mortágua/Matias, ou seja, além da porta-voz, a deputada Mariana Mortágua e a eurodeputada Marisa Matias. Um dos momentos em que Catarina Martins marcou pontos na campanha foi precisamente quando, no final do debate televisivo com Costa atirou para cima da mesa a garantia de que o BE apoiaria um Governo do PS mediante três condições: os socialistas deixarem cair a baixa da TSU, o congelamento e novos cortes nas pensões e prestações sociais e o regime conciliatório de cessação de contractos laborais.

Regresso à AR
Do lado direito do hemiciclo de São Bento, sentaram-se de novo os líderes da desfeita coligação: o presidente do PSD, Passos Coelho, e o presidente do CDS, Paulo Portas. Portas volta a ser deputado, procurando afirmar-se de novo individualmente na Assembleia enquanto líder de um pequeno partido, que baixou de 24 para 18 deputados. Chega ao fim do ano com a promessa de que irá desfazer o tabu que mantém o partido em suspenso sobre a sua continuação na liderança.

Passos foi, depois de Mário Soares, em 1979, o primeiro-ex-primeiro-ministro a passar directamente da ala governamental do Palácio de São Bento para a ala parlamentar e a sentar-se na bancada do seu partido, que apesar de ser a maior nesta legislatura tem apenas 89 deputados, quando há quatro anos elegeu 108.

Inicia o seu percurso de oposição com o currículo de ter chefiado o Governo que atravessou a intervenção externa da troika representativa dos credores, Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional. Além disso tem a seu favor o facto de, depois de quatro anos de governação em condições adversas, ter ganho as legislativas. Mas terá agora de sobreviver na presidência do PSD, quando já há figuras, como Rui Rio, disponíveis para se posicionarem como potenciais desafiantes da sua liderança. E vê a sua gestão do país posta em causa pelo desfecho do caso do Banif.

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