Quando a vida começa numa clínica de desintoxicação

Nos EUA há uma epidemia de consumo de heroína e entre as consequências mais dramáticas está o forte aumento do número de recém-nascidos expostos a drogas. A incidência da “síndrome de abstinência neonatal” quadruplicou em nove anos.

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Makenzee Kennedy e a mãe, Ashley Kennedy, que há 11 anos luta contra a dependência de heroína Bill O'Leary/The Washington Post

Ao fim de um mês de uma dolorosa desintoxicação que lhe deixou o corpo numa permanente posição fetal, depois dos tremores e da diarreia e das insónias e da dificuldade em comer, Makenzee Kennedy foi para casa, para a sua cama numa clínica de tratamento da toxicodependência, e comemorou um momento muito importante: o seu 2.º mês de vida.

É lá que ela vive, com a mãe, Ashley Kennedy, uma mulher de 31 anos que luta há 11 contra a dependência da heroína. Se tudo correr bem, Makenzee nunca mais terá de ver o Hospital Pediátrico Mount Washington, onde foi acompanhada 24 horas por dia para se libertar da dependência das drogas.

“Não é a primeira vez que tento parar”, admitiu Ashley Kennedy enquanto dava o biberão a Makenzee. “Esta é a última vez. Depois de ter feito a minha filha passar por isto, não quero voltar a tocar em drogas.”

Um pouco por todos os Estados Unidos, os danos colaterais da actual epidemia de heroína estão a reflectir-se no sistema de saúde. A taxa de hepatite C disparou, impulsionada pela partilha de seringas entre os dependentes. Os especialistas temem que a transmissão do VIH em breve volte a subir. E a taxa de overdoses de heroína fatais quadruplicou nos últimos dez anos. Em Baltimore, a heroína esteve na origem de quase dois terços das 302 mortes por overdose no ano passado.

“Temos um problema muito sério nos EUA neste momento com o consumo de heroína e outros opiáceos”, disse Alan Spitzer, vice-presidente da Mednax, que presta serviços médicos a mães e recém-nascidos aos hospitais.

Entre as consequências mais dramáticas está o forte aumento do número de recém-nascidos expostos a drogas, como Makenzee. A incidência da “síndrome de abstinência neonatal” quadruplicou em nove anos, para 2,7% de todas as admissões nos serviços de cuidados intensivos neonatais, segundo um estudo publicado em Maio por Alana Spitzer.

Os custos dos cuidados de saúde que têm de ser prestados a todos os recém-nascidos subiram vertiginosamente, para uma média de 53.000 dólares (48.000 euros) em 2009, segundo outra investigação.

Mais barato que tabaco
Com um pacote de heroína a custar menos do que um maço de cigarros, pessoas que estavam viciadas em opióides com prescrição médica estão a virar-se para as drogas de rua em números assustadores, segundo o Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla original). Como consequência, a heroína invadiu a América suburbana e rural.

Chega a locais como Elkton, uma pequena cidade com 15.000 habitantes no Norte do estado do Maryland, onde Ashley Kennedy cresceu. 

Aos 17 anos, Kennedy sofreu lesões na face num acidente de automóvel e foi-lhe receitado Percocet, um narcótico analgésico para tratamento da dor. Tinha facilidade em conseguir os comprimidos mesmo depois de as lesões terem desaparecido, e ela ficou dependente.

Aos 20 anos, começou a vender heroína. “Mas depois quis perceber porque é que tanta gente queria o que eu estava a vender. Bastou um pacote, e fui por aí abaixo”, disse.

“Foi muito bom. Melhor do que o Percocet [o medicamento que tomava].”

Na década que se seguiu, Ashley deu à luz um filho com incapacidade física, viveu num automóvel, e foi presa cinco vezes por furto, fraude com cartões de crédito e outros crimes que ela diz ter cometido para comprar droga. Libertada da cadeia em Setembro do ano passado, voltou a consumir heroína no final desse mês. Em Outubro, descobriu que estava grávida de Makenzee.

Mas continuou a consumir heroína, chegando a injectar 30 pacotes de cinco dólares diários. Quando não estava a injectar heroína, estava à procura de heroína para injectar.

“Estava drogada o dia todo. Acordava e repetia tudo, porque já não tinha nada de manhã”, disse.

Encontrou um médico que lhe receitou Subutex, um medicamento que concebido para substituir a vontade de consumir heroína, mas não resultou. Kennedy acabou por consumir ambas as drogas, ou então trocava Subutex por heroína nas ruas. Depois, virou-se para a metadona, mas também não encontrou alívio suficiente para o seu desejo de heroína.

Em Março, um juiz ameaçou retirar-lhe os filhos. Kennedy decidiu então parar de consumir heroína, e entrou num programa de tratamento. Terminou a gravidez a tomar metadona; deixar de consumir drogas completamente poderia ter impedido o nascimento do seu bebé.

O histórico de consumo de drogas de Kennedy, ainda que muito longo, é relativamente simples, comparando com os hábitos da maioria das grávidas que chegam ao Centro para Dependência e Gravidez, um programa ambulatório intensivo nos hospitais da Universidade Johns Hopkins, que fica perto do hospital em que Makenzee Kennedy foi tratada para ficar livre da sua dependência.

Mais de três quartos das mulheres no programa têm alguma forma de doença mental; muitas tomam medicamentos para a depressão, ansiedade, esquizofrenia, desordem bipolar ou stress pós-traumático, disse Lauren Jansson, a directora de Pediatria.

A maioria tem hepatite C. Os opiáceos são agora a droga de eleição para 75% das mulheres, disse Jansson, mas muitas vezes são misturados com cocaína, marijuana e álcool. Quase todas as mulheres fumam durante a gravidez.

Tal como Kennedy, algumas mulheres procuram ajuda quando descobrem que estão grávidas. Outras negam o consumo até que os filhos nascem e começam a sofrer de tremores e outros sintomas de abstinência, disse Monique Satpute, directora do Centro Neonatal de Tratamento de Transição no Hospital Pediátrico Mount Washington, onde Makenzee foi tratada.

“Temos de voltar atrás e perguntar: ‘Escondeu-nos alguma coisa?’”, disse Satpute.

Abstinência
Os médicos costumavam pensar que a síndrome de abstinência num bebé estava relacionada com a quantidade de heroína que a mãe consumiu, ou com o número de meses a que a criança esteve exposta no útero. Mas os estudos mostraram que a realidade não é essa – alguns recém-nascidos têm sintomas muito leves. Os investigadores estão agora à procura de uma ligação genética à abstinência.

Os prestadores de cuidados de saúde assumem hoje em dia que cada criança sofre o período de abstinência de uma forma diferente de todas as outras. Isto faz com que o processo seja muito complicado, e que exige um trabalho intensivo. Cada recém-nascido deve passar pela desintoxicação muito devagar, e ser monitorizado 24 horas por dia, com um objectivo primordial: evitar um ataque devastador que pode ter consequências para toda a vida.

Apesar de médicos e enfermeiros terem vindo a aperfeiçoar as suas técnicas, a triste realidade é que não podem fazer muito para aliviarem o tormento de um bebé em abstinência. Makenzee, por exemplo, chegou do Centro Médico da Universidade do Maryland já com pequenas infusões de morfina e clonidina, uma medicação para a pressão sanguínea que ajuda ao processo de desintoxicação.

De três em três horas, era avaliada segundo o índice Finnegan, com base em 21 factores observados pelos enfermeiros, incluindo tremores, hiperactividade, febre, dificuldade em dormir, suor e capacidade de sucção, que é muitas vezes comprometida em bebés em processo de desintoxicação. Os resultados são convertidos numa média e usados para determinar a dose de morfina do dia seguinte.

Makenzee foi um caso difícil: os recém-nascidos saudáveis dormem quase todo o dia; ela estava sempre acordada. Os recém-nascidos saudáveis relaxam e começam a esticar os membros; Makenzee apertava os braços e as pernas com força e chorava constantemente, enquanto se adaptava às minúsculas reduções nos opiáceos que consumiu enquanto esteve no útero. Tinha diarreia com fezes ácidas e suava muito.

Os enfermeiros reduziam a intensidade da luz no seu quarto, punham a tocar música suave e falavam quase em surdina. Tapavam-na com cuidado e seguravam-na nos braços. Mudavam-lhe as fraldas várias vezes e alimentavam-na.

“É doloroso”, disse Kay Mathias, a enfermeira responsável pela unidade em que Makenzee foi tratada. “É doloroso passar por esta fase de desintoxicação.”

Dos 97 recém-nascidos toxicodependentes a quem o Mount Washington deu alta no último ano, a maioria estava preparada para regressar a casa ao fim de cerca de duas semanas. A desintoxicação de Makenzee demorou 31 dias.

Os estudos feitos até agora não indicam que haja consequências devastadoras a longo prazo para estes bebés. Tendem a ter piores resultados nos indicadores de saúde e socioeconómicos, mas não é claro se isso resulta das drogas no seu sistema no momento em que nascem ou das condições em que são criadas posteriormente, muitas vezes em habitações terríveis e com pais toxicodependentes.

“Pensamos que elas não têm nenhum atraso em termos de desenvolvimento neurológico apenas pelo facto de terem passado pela abstinência”, disse Leslie Kerzner, directora médica da Enfermaria de Cuidados Especiais no Hospital Geral do Massachusetts, em Boston, que acompanha este tipo de crianças durante anos após o seu nascimento. “Na maioria dos casos, o cérebro é muito adaptável.”

Na clínica de tratamento, Ashley Kennedy preparaou-se para a saída da sua filha largando o consumo de metadona. Depois do tratamento, pensa em regressar à casa da mãe, em Elkton, onde espera criar os filhos longe dos seus amigos toxicodependentes.

Não consumiu nada durante nove dias, uma experiência brutal que espera que lhe dê a clareza mental suficiente para a jornada mais difícil que se avizinha.

“Passámos por isto juntas na última semana”, disse Kennedy. “Foi doloroso. Faz doer o corpo. Doem-me os ossos. Não consigo ficar quietas. Não consigo dormir. Não consigo comer. Tenho diarreia… Ainda me dói o corpo. Às vezes são as minhas pernas, os meus joelhos. Mas vale a pena. 

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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