E a missão ética das instituições culturais?

Museus internacionais em Abu Dhabi mantêm silêncio enquanto os Emirados Árabes Unidos recusam entrada a artistas do colectivo Gulf Labor. E enquanto os seus trabalhadores de construção civil na região vêem os seus direitos desrespeitados

Foto
Raad fotografado na Culturgest, quando expos em Lisboa, em 2007 Miguel Madeira

Primeiro foi Andrew Ross, em Março, depois foi Ashok Sukumaran, no princípio do mês, agora foi a vez de Walid Raad – os Emirados Árabes Unidos estão a recusar entrada aos artistas e teóricos ligados ao colectivo Gulf Labor, que expõe e questiona as condições dos imigrantes a trabalhar na construção de museus e outras instituições culturais na Ilha Saadiyat, em Abu Dhabi.

No dia 11, Raad preparava-se para participar no simpósio internacional March Meeting, que a Sharjah Art Foundation organiza anualmente em Sharjah. Ao aterrar no aeroporto do Dubai foi conduzido a uma sala fechada onde ficou por duas horas. Até os serviços de imigração lhe negarem entrada nos Emirados, alegando "motivos de segurança” e acabando por lhe confiscar o passaporte por 24 horas – o tempo que ficou retido no aeroporto até ser deportado, de regresso aos Estados Unidos.

Raad, que nasceu em Beirute, no Líbano, mas está há muito radicado em Nova Iorque, preparou uma declaração que deu a publicar na íntegra ao Hyperallergic, uma publicação online especializada em arte. “A 12 de Maio um funcionário do aeroporto escoltou-me até à minha porta de embarque e devolveu-me o meu passaporte. Não fui assediado. Não fui ameaçado. Na verdade, foi uma simples formalidade de imigração. O que ficou comigo foram as palavras ditas em árabe: ‘Estão a expulsá-lo’ e ‘por motivos de segurança’. Três dias depois estas palavras continuavam a enraivecer e entristecer-me”, escreveu Raad.

Os “motivos de segurança” foram os mesmos alegados no caso de Andrew Ross e Ashok Sukumaran. “Somos todos membros do Gulf Labor”, explica Raad. “Todos falámos publicamente sobre as condições de trabalho no Golfo, especialmente no que toca à construção do Guggenheim Abu Dhabi, mas também do Louvre, da [delegação local da] Universidade de Nova Iorque [NYU] e de outras instituições culturais na Ilha Saadiyat. Fizemo-lo de forma pacífica e construtiva.”

Quando lhe foi recusada entrada, Raad preparava-se não apenas para participar na March Meeting: ia também continuar a pesquisa que o Gulf Labor começou em 2010 e cujos últimos resultados estão actualmente em exposição na Bienal de Veneza, a mais importante bienal de arte do mundo e na qual o colectivo foi convidado a participar pelo curador Okwui Enwezor.

Na exposição temática comissariada por Enwezor, intitulada All The World’s Futures (“todos os futuros do mundo”), o Gulf Labor tem um grande monitor onde são exibidos os seus relatórios em edição bilingue – inglês e italiano. Numa secção lê-se: “A organização não governamental Human Rights Watch relata que os trabalhadores migrantes do sul da Ásia que estão a construir ou a tratar da preservação das extensões do Guggenheim, do Louvre e da NYU em Abu Dhabi estão sujeitos a graves violações dos seus direitos. O Gulf Labor, um grupo internacional de artistas, declara que o Guggenheim, o Louvre e a NYU têm o dever ético de garantir que os trabalhadores recebem os seus salários e que os seus direitos não são violados.”

O trecho acaba com uma pergunta dirigida a quem lê: “Concorda?”

82 páginas de más condições

Foi a 10 de Fevereiro deste ano que a Human Rights Watch (HRW) divulgou o relatório Migrant Workers’ Rights on Saadiyat Island in the United Arab Emirates: 2015 Progress Report, o terceiro de uma série de relatórios de informação e avaliação (da falta) de progressos nas condições de trabalho da Ilha Saadiyat.  

Em 82 páginas, o documento explica como, cinco anos volvidos sobre a chamada de atenção inicial da HRW, alguns empregadores deste destino de luxo com 27 quilómetros quadrados e milhões de investimento em obras assinadas por alguns dos mais importantes arquitectos do mundo continuavam a reter pagamentos e benefícios laborais, a confiscar passaportes a trabalhadores migrantes e a alojá-los em acomodações deficitárias. Por isso mesmo, em Maio e Outubro de 2013, os trabalhadores acabaram por se organizar e entrar em greve.

“Nos casos mais graves, os empreiteiros a trabalhar para as duas entidades governamentais encarregues das obras da NYU e do Louvre parecem ter informado as autoridades dos Emirados Árabes Unidos sobre a greve, levando à deportação arbitrária de várias centenas de trabalhadores”, diz a HRW. “O progresso no respeito pelos direitos dos trabalhadores na Ilha Saadiyat arrisca ser atirado pela janela se os trabalhadores souberem que não podem protestar quando as coisas correm mal”, declarou Sarah Leah Whitson, directora da HRW para as regiões do Médio Oriente e África do Norte, citada num comunicado da própria HRW.

A HRW nunca teve autorização para aceder às obras em curso, mas um agente da agência entrevistou 116 trabalhadores, tanto actuais como passados. Em Janeiro de 2014, quando estava a sair do país, representantes do Ministério do Interior dos Emirados informaram-no que não voltariam a deixá-lo entrar.

Segundo a análise de progressos divulgada pela agência, os Emirados mudaram entretanto as suas leis laborais. Os trabalhadores da construção civil podem agora mudar de empregador sem o consentimento destes. Ficou também legislada a revogação de licenças a agentes que cobrem aos trabalhadores taxas de contratação. E são normas aplicadas tanto nas obras da NYU como dos museus. “Ainda assim”, diz a HRW, “os trabalhadores continuam a sofrer graves abusos, incluindo deportação sumária”.

Na sequência das greves de 2013, isso mesmo terá acontecido com trabalhadores da BK Gulf, empreiteira da NYU. “Prenderam toda a gente que conseguiram apanhar”, contou à HRW um ex-trabalhador da BK Gulf. Segundo esta e outras testemunhas, as prisões terão sido feitas por polícias encapuzados e descritos como “aterrorizadores”. Um trabalhador contou que a polícia do Dubai se tornou violenta durante o seu interrogatório e exigiu saber quem tinha organizado a greve. Esta, segundo alguns testemunhos, terá levado a 200 deportações – um número diferente do apontado pelos media da região, que falam em mais do dobro: 467.

Um antigo trabalhador da Arabtec, que foi deportado, disse à HRW que está até hoje a tentar pagar às pessoas no Bangladesh que lhe emprestaram os 2600 dólares (2200 euros) que lhe cobraram como taxa de contratação não reembolsada.
 
Troca cultural

Na declaração que entregou ao Hyperallergic, Raad, o artista por detrás também do conhecido The Atlas Group, explica que antes de viajar para os Emirados entrou em contacto com oficiais governamentais locais, bem como com representantes do Guggenheim de Nova Iorque, do Guggenheim Abu Dhabi e da Companhia de Investimento & Desenvolvimento Turístico. “Todos sabiam da minha visita. Muitos organizaram ou estavam a organizar encontros comigo e outros membros do Gulf Labor. A NYU, o Guggenheim, o Louvre, o British Museum e outros mantiveram silêncio quando, em Março, a entrada foi negada a Andrew Ross. Espero que esse silêncio não tenha sido tomado por oficiais dos Emirados como uma aprovação tácita de futuras acções.”   

O trabalho de Raad está representado nas colecções tanto do Guggenheim de Nova Iorque como do Bristih Museum, em Londres. Também já passou pelo Louvre. Raad já recebeu bolsas de trabalho e prémios das instituições em causa e participou em conferências por estas organizadas. Foi até convidado a fazer propostas para o Guggenheim Abu Dhabi. Também já deu aulas na NYU e participou em anteriores March Meetings e na Bienal de Sharjah. Na sua declaração, escreve: “Há um par de semanas, o Guggenheim declarou que a sua extensão de Abu Dhabi é ‘uma oportunidade de troca cultural dinâmica e de mapear uma perspectiva mais inclusiva e abrangente da história da arte’. Concordo. Mas pergunto-me se proibições e deportações serão o destino de artistas, escritores e outros que realmente se envolvam nessa troca. Agora que sei, questiono-me como poderá o Guggenheim ser ‘inclusivo e expansivo’ quando os próprios artistas que devem ser incluídos são sistematicamente excluídos, banidos e deportados.”

Raad sopra a cortina de fumo da suposta abertura da zona do Golfo Pérsico: “Estes museus, bienais, universidades e feiras de arte no Golfo vão convidar-te para falar, mostrar e comprar o teu trabalho; até podem celebrar o seu conteúdo ‘político’, desde que se foque noutro alguém. Mas livrem-se de qualquer coisa que procure uma ‘troca cultural dinâmica’ local ou regional porque é aí que as coisas se tornam incertas, e esses cujo apoio seria mais necessário poderão começar a dizer coisas como ‘a situação é complicada’ e ‘estamos a fazer chamadas, mas, até agora, nada’ e ‘apoiamos-te verdadeiramente, mas temos influência limitada’.”

“Por outras palavras”, concluiu Raad, “estejam preparados para que eles sacudam o capote.”

O final da declaração surge disfarçado de esperança: “Mantenho-me (talvez ingenuamente?) esperançoso de que estas recentes proibições sejam todas um ‘erro burocrático’, um ‘tropeção’ administrativo. Gostaria de pensar que os Emirados serão um lugar acolhedor não apenas para os seus apoiantes mas também para os seus críticos pacifistas e construtivos. Mantenho-me esperançoso de que o Guggenheim, o Louvre, a Agence France-Muséums, a NYU, o British Museum, as suas extensões nos Emirados e as outras instituições culturais dos Emirados no Dubai, Sharjah e Abu Dhabi trabalharão no sentido de reverter estas interdições e possam antecipar e amaciar quaisquer fricções futuras.”

Sugerir correcção
Ler 1 comentários