A de Antonia, D de dodó, T de tigre-da-tasmânia, U de urso...

Coreógrafa alemã regressa a Portugal para mostrar o seu Abecedarium Bestiarium no Auditório de Serralves.

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Um dos animais extintos de Abecedarium Bestiarium: o tigre da Tasmânia ANJA WEBER

Pode não ser evidente para os espectadores portugueses que Antonia Baehr tenha uma vida dupla como mulher (coreógrafa, performer, curadora, produtora…) e como animal selvagem. Mas o nome de família da coreógrafa que esta tarde, pelas 18h, traz o seu Abecedarium Bestiarium (2013) a Serralves significa “urso” em alemão – e, para ajudar à festa, o símbolo da cidade onde nasceu, Berlim (que foneticamente vai lá dar), também é o urso. “O cartão que os meus pais mandaram imprimir a participar o meu nascimento tinha ursinhos desenhados. Não brinquei com bonecas, brinquei com ursos de peluche. E como se não bastasse, as pessoas dizem que eu me pareço bastante com um urso, forte e grande – e a minha família idem”, conta ao PÚBLICO sentada num das poltronas do bar do auditório, lugar onde dificilmente avistaríamos o animal que parece feliz por carregar às costas desde que nasceu.

Não necessariamente por causa de todas essas coincidências, em 2012 criou uma peça, My Dog Is My Piano, em que analisava a longa coabitação (e a longa contaminação) entre a sua mãe e o cão dela, Tocki; a peça com que hoje regressa a Portugal (passou pelo Festival Materiais Diversos em 2010 com um espectáculo, Rir, em que passava 50 minutos a rir-se) é uma reflexão paralela sobre a forma como o ser humano se relaciona com os animais, e em particular com os animais que têm uma história de extinção para contar. “My Dog Is My Piano era sobre as afinidades entre dois seres vivos; um dueto que tem lugar 24 horas sobre 24 horas há mais de 14 anos. Abecedarium Bestiarium é sobre as afinidades intemporais entre nós e um conjunto de animais desaparecidos que funcionam sobretudo como metáforas, superfícies de projecção do nosso imaginário individual e colectivo, até porque pouco sabemos sobre eles. Nalguns dos casos não há sequer fotografias; as únicas representações que existem são desenhos”, explica. Nisso, a origem desta peça mistura-se de facto com a infância de Antonia Baehr – uma infância muito particular, passada no campo, em França, rodeada de animais por todos os lados e a curta distância de algumas das mais extraordinárias grutas rupestres da Europa, onde pelo menos uma das histórias de extinção que aqui se contam, a do cavalo selvagem (Equus sylvestris) foi resgatada. “Parte tudo daquele jogo muito comum que fazemos quando somos crianças: ‘Se fosses um animal, que animal serias?’”, continua.

Para uma das amigas que convidou a co-criar este álbum colectivo que é Abecedarium Bestiarium, a resposta foi óbvia: Dodo escolheu o dodó (Raphus cucullatus) porque Antonia queria saber como é viver debaixo do nome (e da asa) do animal extinto mais famoso do mundo. Ao contrário do nome da coreógrafa, e do rato que também é um nome de família comum, o nome de Dodo conta uma história de inadaptação: “O rato adapta-se a tudo, funciona sempre; a sua adaptabilidade está até relacionada com o desaparecimento de alguns animais, que os ratos transportados nos barcos dos colonizadores contaminaram com as doenças europeias. Há uma eficácia na sobrevivência do rato que os animais extintos não têm – a marginalidade matou-os, sobrevivem apenas enquanto fantasmas.”

Exaustivo, o abecedário que a coreógrafa construiu a partir das partituras curtas encomendadas aos amigos de acordo com uma instrução simples – deviam inspirar-se no animal extinto que melhor representasse a sua ligação pessoal com Antonia – documenta, usando meios muito diversos, o desaparecimento do golfinho-chinês do rio Yang-Tsé (Lipotes vexilifer), do tigre-da-tasmânia (Thylacinus cynocephalus), da pomba-fruta de bigode vermelho da ilha de Hivaoa, da vaca-marinha de Steller (Hydromalis gigas) descoberta em 1741 no Estreito de Bering… Em Serralves, apresenta-se na sua versão incompleta de recital – oito letras para outros tantos animais que são outras tantas metáforas das amizades que a coreógrafa alemã construiu na vida e no trabalho, algumas remontando à infância no Sul de França, outros aos seus tempos de squatter em Berlim – e na sua versão completa de livro paralelo. Quis rodear-se destas pessoas porque não lhe apetecia estar sozinha neste solo: “Ainda assim, há sempre uma sensação de vazio… Os amigos não estão, os animais também não. Mas o teatro é talvez o melhor lugar para fazermos aparecer os ausentes, os invisíveis.”

Entretanto, Antonia não teve de descobrir que animal seria se fosse um animal. O urso está lá desde sempre: não o urso verdadeiro, directo e perigoso, mas o urso do imaginário colectivo, lento e caloroso. Depois de Abecedarium Bestiarium, ela já só tem uma dúvida: “Será que te transformas em urso porque te chamas urso ou chamas-te urso porque o teu antepassado se parecia com um urso?”.

 

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