França, o “grande problema” da Europa

Nas europeias, a França foi o único país que colocou em primeiro lugar um partido que defende a saída da UE.

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A França tornou-se o “grande problema” da Europa, diz o antigo primeiro-ministro italiano Mario Monti. Afirmou ao diário britânico The Telegraph na véspera da primeira volta das eleições departamentais: “Nos últimos anos vimos a França retroceder em termos de resultados económicos, em termos do cumprimento das regras europeias e, sobretudo, em termos da opinião pública doméstica: que se está a voltar cada vez mais contra a Europa.”

Preocupam-no as campanhas antieuro na Itália, em Portugal ou na Grécia. Mas o caso francês tem outra dimensão. Foi a França e não a Alemanha que impôs o euro, a que os alemães aderiram sem entusiasmo para obter luz verde para reunificar as duas Alemanhas. Um quarto dos franceses votam numa formação marcadamente antieuro, a Frente Nacional (FN), enquanto parte da elite política, à esquerda e à direita, cultiva o eurocepticismo em vários tons.

“A França é o grande problema da União Europeia (UE), porque toda a sua construção teve como alicerce uma sólida entente franco-alemã. Sem isto, a Europa terá um triste destino. Vemos que este forte eixo já não é tão forte como antes.”

Monti responsabiliza ainda os dirigentes europeus pelo crescimento do populismo antieuro: “Os líderes políticos em muitos Estados estão obcecados com a próxima eleição doméstica e pouco fazem para ajudar a população a ver as vantagens da construção europeia.”

Nas eleições europeias de 2014, a França foi o único país europeu que colocou em primeiro lugar um partido que defende abertamente a saída da UE. “O outro país do eurocepticismo, ao lado da Grã-Bretanha, é agora a França”, assinala o correspondente do Libération em Bruxelas. A responsabilidade é também dos cidadãos: “Foram eles quem enviou para Estrasburgo 24 deputados FN (em 74 a que a França tem direito).”

O Financial Times equacionou assim o problema: “O elo fraco da Europa são os eleitores.” É o voto “em partidos anti-sistema que rejeitam o consenso europeu sobre o modo de preservar a moeda única”. Protestam contra a austeridade ou a degradação económica, contra o imigrante ou o estrangeiro em geral, contra a insegurança ou contra a “casta política”.

Este é o pano de fundo para a avaliação dos resultados da segunda volta das eleições francesas que hoje terá lugar.

O tripartidarismo
A ascensão da FN de Marine Le Pen criou uma nova realidade: o tabuleiro político passa a ser formado por três blocos concorrentes, tornando-se tripartidário, o que desestabiliza os equilíbrios tradicionais da V República. A lógica bipartidária – a alternância entre o PS e a UMP (direita) – apenas resiste na medida em que o sistema eleitoral da V República (escrutínio uninominal maioritário em duas voltas) implica a sub-representação da extrema-direita por impossibilidade de fazer acordos de desistência.

O fenómeno não é inédito na V República. Nos anos 1960-70, o Partido Comunista (20% dos votos) ocupava a “função tribunícia” que depois passou a ser exercida pela FN. Esse mapa partidário garantia a hegemonia da aliança entre gaulistas e liberais, condenando a esquerda à oposição. Esta lógica foi alterada por François Mitterrand, que “refundou” o PS como partido vocacionado para vencer presidenciais – fez uma viragem à esquerda e impôs uma aliança aos comunistas. Resultado: os socialistas puderam vencer presidenciais e legislativas e o PCF foi perdendo os seus eleitores.

O tripartidarismo de hoje tem uma característica: “As três forças que dominam a paisagem política não têm qualquer intenção de governar em conjunto. Nenhum acordo é possível. E nenhuma pode ser maioritária por si só”, sintetizou o Monde. Numa situação “normal” poderia haver alianças e combinações entre duas forças para constituir coligações e maiorias parlamentares. Tal não sendo possível, emerge um quadro instável e altamente conflitual.

“O tripartidarismo é um sistema transitório”, diz o analista Jerôme Fouquet, do instituto IFOP. “O nosso sistema político foi concebido para uma organização bipolar: PS e aliados de um lado, a direita e os centristas de outro. Uma FN a um nível estruturalmente muito elevado significa a marginalização mecânica e sistemática do PS ou da UMP na segunda volta.”

“Por outro lado, as contradições e as clivagens sobre a Europa e sobre as reformas tornam-se demasiado fortes dentro de cada bloco.” Haverá “choques muito violentos” nas sucessivas eleições que poderão levar a uma recomposição do mapa partidário, conclui Fouquet. Estas eleições departamentais, em que a UMP apareceu aliada aos centristas e a FN consolidou a sua representação, vão traduzir-se numa larga vitória da UMP e numa pesada derrota do PS, com escassos aliados e desgastado pela concorrência da extrema-esquerda e de ecologistas.

Haverá crescente tensão entre a “tripartição” do voto e a bipolarização do poder imposta pelo sistema eleitoral. Para Marine Le Pen, o objectivo é provocar a implosão da UMP para conquistar parte do seu eleitorado. Por isso denuncia permanentemente o “sistema UMPS” cuja destruição seria a chave da possibilidade de acesso ao poder. O teste será feito nas presidenciais de 2017.

O desafio de Le Pen
O PS ficou em terceiro lugar tanto nas eleições europeias como nas departamentais. A reprodução deste quadro em 2017 significaria a eliminação de François Hollande ou outro candidato socialista na primeira volta. Aconteceu uma vez, em 2002, quando o socialista Lionel Jospin foi eliminado por Jean-Marie Le Pen (que teve 17% dos votos). Foi um “acidente”. Hoje, as circunstâncias mudaram.

Num editorial dramático, o Monde apelava ao voto nos candidatos da UMP ou do PS contra a FN. “[Em 2002], Jean-Marie Le Pen não visava a vitória, contentava-se em fazer campanhas presidenciais sem real estratégia. Depois da passagem do testemunho à filha, em Janeiro de 2011, a situação é radicalmente diferente: Marine Le Pen quer conquistar o poder.”

Poucos crêem na sua vitória. A ameaça é outra. “Em 2017, estão reunidas todas as condições para que Marine Le Pen se qualifique ou fique muito próxima de se qualificar para a segunda volta”, anota o politólogo Bruno Cautrès. “Depois, o candidato da UMP ou do PS deverá reunir os eleitores para vencer a segunda volta. Se Marine não se qualificar para a segunda volta, poder-se-á dizer que a lógica do bipartidarismo resistiu, pelo menos temporariamente.”

As presidenciais estimulam a bipolarização. A eliminação do candidato da UMP ou do PS significaria um sismo político. Previne o historiador Jean Garrigues: “A força política eliminada em 2017 estará provavelmente condenada ao estilhaçamento.”

Monti terá razão: a França é a grande dor de cabeça da Europa.

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