Primeira unidade pediátrica de cuidados continuados está atrasada

Cerca de seis mil crianças em Portugal beneficiariam de cuidados continuados e paliativos, que devem sobretudo ser prestados em casa. Cerca de 200 morrem sem os receber de forma abrangente, estima a pediatra Ana Lacerda.

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Há crianças com doenças graves que ficam nos hospitais por falta de outras soluções, diz responsável Rui Gaudêncio

A abertura da primeira unidade pediátrica de cuidados continuados e paliativos em Portugal foi adiada por falta de verbas, prevê-se agora que seja inaugurada até ao Verão. O Ministério da Saúde já recebeu o relatório final do grupo de trabalho criado para implementar uma rede nacional deste tipo de cuidados para crianças.

Há crianças com doenças crónicas particularmente graves, algumas com uma curta esperança de vida, que ficam internadas nos hospitais por falta de outras soluções, afirma a enfermeira Paula Neutel, uma das fundadoras da associação No Meio do Nada, a quem falta angariar 300 mil euros para terminar as obras da primeira unidade deste tipo no país, que se vai chamar Kastelo. A abertura da casa, que funcionará em São Mamede de Infesta (município de Matosinhos) com 30 camas, estava prevista até ao final deste mês.

A associação nasceu sobretudo da vontade de um grupo de enfermeiros que trabalhavam em cuidados intensivos pediátricos e se apercebiam, no seu dia-a-dia, “do sofrimento dos pais, de famílias que ficam desestruturadas. Um dos pais muitas vezes tem de deixar de trabalhar”, diz Paula Neutel. A responsável refere, por exemplo, que “os infantários não recebem crianças com traqueostomia [quando é precisa ventilação mecânica prolongada]. Está-se a falar, por exemplo, de crianças com paralisias cerebrais com dificuldades respiratórias graves, que precisam de aspiração de secreções e de vigilância permanente.

A instituição nasceu em 2010 para apoiar, os pais durante o internamento dos filhos, com alimentação, vestuário e apoio emocional. “Os pais ficam desamparados, correm para o hospital e deixam de pensar neles”. A ideia de criar a unidade nasceu do desejo de criar um espaço para estas crianças. No site da associação, onde se convida à doação de “um euro por um tijolo” (NIB: 0010 0000 47393210001 60), “escreve-se que as crianças portuguesas com este tipo de necessidades não têm sido abrangidas pelos projectos do Serviço Nacional de Saúde, sendo ignoradas e esquecidas, ficando internadas por longos períodos nos serviços de pediatria.”

O Kastelo será um sitio onde, por exemplo, os pais podem colocar os filhos temporariamente, “para respirarem fundo por uns dias”, diz Paula Neutel. A lei prevê o direito ao descanso do cuidador mas, na prática, para quem não tem meios isso é difícil. A unidade pode ser uma solução quando há um imprevisto numa família. “Basta um pai partir uma perna para deixar de ter capacidade de cuidar de um filho”. Paula Neutel diz que não haverá necessidade para, no país, existirem mais do que três unidades deste tipo.

Rede nacional
Quando se fala de paliativos pensa-se erradamente apenas em “cuidados em final de vida”, esclarece, sempre que se fala desta temática, a médica Ana Lacerda, que o Ministério da Saúde nomeou como coordenadora de um grupo de trabalho para a implementação de uma rede nacional de cuidados continuados pediátricos. O relatório com as propostas finais, e respectivo cronograma para a sua criação, foi entregue no início de Janeiro ao Ministério da Saúde, refere a responsável.

A maioria destes cuidados destina-se “a crianças que não vão melhorar da sua doença mas que podem ter a sua qualidade de vida muito melhorada”. A médica refere, por exemplo, o caso de crianças que sofrem de paralisia cerebral, de doenças metabólicas, epilepsia grave, que têm cancro mas que vão superar a doença (a taxa de sobrevivência em idades pediátricas ronda os 75%).

A prestação de cuidados continuados e paliativos engloba, por exemplo, a medicação para o controlo de sintomas, desde fármacos para a dor, para o controlo de espasmos e vómitos, mas também apoio psicológico à criança e família. Passa “por encaminhar as pessoas para os apoios sociais e financeiros que existem para os seus casos e que as pessoas muitas vezes desconhecem”. Nos casos “mais dramáticos” os cuidados paliativos passam também “pelo apoio no luto, no apoio à família pós-morte”.

Ana Lacerda diz que, por ano, pelo menos seis mil crianças e jovens até aos 18 anos, "um número que peca por ser uma subestimativa, beneficiaria desta abordagem paliativa”, destas, cerca de 200 acabam por morrerão sem a receber. A causa de morte é sobretudo o cancro, doenças cardiovasculares (nomeadamente patologias cardíacas congénitas) e doenças neuromusculares.

Mas Ana Lacerda ressalva que não se está a dizer que estas crianças não recebem estes cuidados de todo, “o que não recebem é de uma forma organizada”. Tudo acontece “por boa vontade dos hospitais”, mas muitas vezes há obstáculos institucionais, nota a especialista, que é pediatra no Instituto Português de Oncologia de Lisboa.

Um exemplo: no IPO de Lisboa tentaram recorrer a equipas de cuidados domiciliários de centros de saúde para também darem apoio a crianças doentes, responderam-lhes que não têm nem formação nem autorização para o fazer. “As crianças é como se não existissem, como se não sofressem ou não morressem”.

“Temos de organizar”. Serão precisas alternativas pontuais ao internamento, como é o caso do Kastelo, mas o grande foco serão sempre as famílias, que deverão ser ajudadas e ensinadas a cuidar destas crianças onde elas devem estar, em suas casas, sublinha.

O director do hospital pediátrico, integrado no Centro Hospitalar de São João, Caldas Afonso, diz que têm, desde há quatro anos, uma unidade móvel de cuidados continuados, com apoio da Casa do Gil, que vai prestar este tipo de cuidados a casa de crianças, do Porto a Bragança. Fala por exemplo de transfusões sanguíneas que já podem ser feitas no domicílio, assim como da aplicação de alguns citostáticos (medicamentos usados no tratamento do cancro). “Cada hospital tem de dar resposta aos doentes da sua responsabilidade”.

Caldas Afonso sublinha que "não é pelo facto de não existir uma rede que temos deixado de disponibilizar estes cuidados aos nossos doentes. A questão está em ser criada uma rede organizada, transversal ao pais e que não deve estar apenas dependente da boa-vontade das instituições. As crianças têm o mesmo direito do que os adultos.”

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