Ordem quer menos medicamentos vendidos fora das farmácias

Posição dos farmacêuticos é tomada quando os distribuidores propõem alargamento de mercado que vale 40 milhões por ano. Infarmed está a trabalhar lista de medicamentos de venda exclusiva em farmácias.

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O número de embalagens vendidas fora das farmácias tem aumentado todos os anos PEDRO VILELA

Há dez anos alguns medicamentos não sujeitos a receita médica deixaram de ser vendidos exclusivamente nas farmácias e passaram a ser comercializados em espaços abertos junto de supermercados e superfícies comerciais. Para a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), o balanço positivo justifica que se avance mais, alargando a lista de fármacos disponíveis nestes espaços de saúde e que já representam um volume de negócios anual de mais de 40 milhões de euros. No sector há quem veja vantagens. Mas para a Ordem dos Farmacêuticos os riscos são muitos e nunca foram avaliados, pelo que defendem até um recuo e o regresso às farmácias de pelo menos alguns dos medicamentos.

A ideia de trazer mais medicamentos das farmácias para estes espaços comerciais, explicou ao PÚBLICO a directora-geral da APED, será apresentada nesta quarta-feira no âmbito do seminário Liberdade de Escolha no Acesso ao Medicamento, na Gulbenkian. “Entendemos que este era o ano para fazermos um balanço e trazermos novamente para a discussão o tema da automedicação em Portugal e os impactos positivos que pode ter quer nos portugueses quer nos agentes económicos e, sobretudo, no custeio das necessidades de saúde em Portugal”, afirma Ana Isabel Trigo Morais, que vê no acesso rápido uma oportunidade de resolver episódios curtos de doença.

Por agora nos locais de venda fora das farmácias podem ser vendidos todos os medicamentos não sujeitos a receita médica (MNSRM), incluindo os comparticipados, mas neste caso o cidadão perde o acesso à parte que o Serviço Nacional de Saúde pagaria. Para a representante da APED, a experiência internacional de países como o Reino Unido indica que o alargamento é o caminho certo e destaca que, do lado do consumidor, a “conveniência, horários diversificados e confiança nestes espaços” aponta no mesmo sentido, assim como os preços mais baixos nos produtos mais comuns - ainda que os dados da Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) apontem para uma subida dos preços.

Ana Isabel Trigo Morais acredita que a oportunidade existe sobretudo para medicamentos para as alergias (anti-histamínicos), mas também para anti-inflamatórios e fármacos para problemas de estômago. Como exemplo do que pode mudar, refere o anti-inflamatório ibuprofeno que nestes espaços apenas existe na versão de 200mg, quando nas farmácias há em dosagens superiores.

A mudança é também corroborada pela Associação Nacional de Farmácias (ANF) que, num comunicado, sublinha que "não há razão, de natureza técnica ou científica, que justifique impedimentos à comercialização de medicamentos de venda livre em quiosques, gasolineiras, postos de correios, cafés, restaurantes e outros pontos de venda por natureza próximos das populações, alargando substancialmente o acesso e a concorrência". Mas salienta que os preços, ao contrário do esperado, não estão a descer e que o acesso aos fármacos não aumentou uma vez que a maior parte dos novos pontos de venda são no litoral e grandes centros urbanos. A ANF é mais favorável à venda em farmácias, mas perante um processo com dez anos reconhece agora que "mais vale maximizar as potencialidades de acesso e concorrência que existem nos países com este modelo".

É também na automedicação que o bastonário da Ordem dos Farmacêuticos coloca a tónica, mas pela negativa. “O medicamento, seja legalmente sujeito ou não sujeito a receita médica, não pode ser encarado como um bem de consumo corrente. Não pode ser banalizado porque representa riscos para a saúde publica e é fundamental que seja garantida a sua utilização racional, segura e efectiva”, defende Carlos Maurício Barbosa, que admite discordar da mudança introduzida em 2005 no Governo de José Sócrates e que “entregou um mercado às grandes superfícies que até aí não tinham e que hoje representa no que respeita aos MNSRM cerca de 40 milhões de euros por ano e o valor triplica com os outros produtos associados vendidos nos mesmos espaços”.

Os últimos dados do Infarmed, relativos a 2014, indicam que existem no país 1013 locais de venda registados e que no ano passado foram vendidos fora das farmácias um total de 7,7 milhões embalagens de MNSRM, o que representa um crescimento de 4,2% em relação a 2013 (mais 314 mil embalagens) e 20% do total deste tipo de medicamentos. Em termos de valor o crescimento ainda foi maior, com as receitas a ascenderem a 41,4 milhões euros, mais 12,4% do que no ano anterior. O campeão de vendas é o paracetamol (analgésico), com quase 15% do volume. Em termos de valor a tabela é liderada pelo anti-inflamatório diclofenac, com quase 8% do total.

O Infarmed, contactado pelo PÚBLICO, diz que não está previsto o alargamento da lista de fármacos vendidos fora das farmácias, estando o regulador a trabalhar sim no documento dos fármacos sem receita médica mas de dispensa exclusiva em farmácia – a chamada “terceira lista”. Ainda assim, “a legislação aplicável prevê uma reavaliação posterior dos medicamentos com esta classificação, a qual poderá traduzir-se no alargamento do número de MNSRM disponíveis”, salienta o Infarmed.

A chamada “terceira lista” peca por “grande atraso”, salienta Carlos Maurício Barbosa, que descreve que a legislação foi a Conselho de Ministros em Junho de 2013. O bastonário reitera que é fundamental batalhar por mais barreiras no que diz respeito aos fármacos de dispensa exclusiva nas farmácias. Entre os casos que considera mais graves e que gostaria que regressassem às farmácias, destaca o caso da pílula do dia seguinte, mas não só. “Ou estamos do lado da defesa da saúde pública ou dos grandes grupos económicos. Desde 2005 alguém foi ver se aumentaram os problemas hepáticos dos portugueses devido ao uso indiscriminado de paracetamol? Alguém estudou se esta medida trouxe mais problemas de sangramento na mucosa do estômago derivados de analgésicos e anti-inflamatórios?”, questiona Carlos Maurício Barbosa.

Menos radical é José Aranda da Silva. O antigo presidente do Infarmed e actual director da Revista Portuguesa de Farmacoterapia é um dos oradores do seminário da Gulbenkian e defende as vantagens em termos económicos e de saúde pública da saída de mais medicamentos das farmácias, justificando que muitas pessoas vão ao médico de família pagar cinco euros por uma consulta para ter medicamentos que custam menos do que essa taxa moderadora. “É possível melhorar a saúde das pessoas facilitando o acesso a estes medicamentos até porque neste momento não há coerência dos medicamentos que estão disponíveis”, salienta o também antigo bastonário dos farmacêuticos, dando como exemplo os contraceptivos interditos fora das farmácias.

Porém, tal como Carlos Maurício Barbosa, Aranda da Silva diz que Portugal tem de trabalhar melhor alguns dos pontos da legislação, apostando em mais monitorização e formação dos funcionários dos espaços de saúde. “Pode sempre haver o risco da automedicação mas o caminho faz-se com acções de sensibilização e com outras medidas, como não ter alguns medicamentos expostos nestes espaços e dispensados apenas quando pedidos”, diz Aranda da Silva, que defende também a venda de mais medicamentos sem receita dentro das farmácias.

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