Há médicos que são “felizes” a fazer só urgências

Ter equipas fixas de médicos nas urgências é a solução para o problema estrutural destes serviços, defende o coordenador da última proposta para a reforma da rede.

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José Artur Paiva Maria João Gala

As medidas conjunturais agora anunciadas em catadupa pelo Governo não resolvem o problema estrutural dos serviços de urgência (SU) hospitalares em Portugal. O vai acontecer a estes serviços, muitos dos quais enfrentam problemas de afluência e de organização durante o ano inteiro, depois de passada a onda de frio, a epidemia de gripe e o pico de procura verificado neste Inverno?

Para o coordenador do último trabalho sobre a reforma da rede de emergência e urgência hospitalar, o médico e professor da Faculdade de Medicina do Porto, José Artur Paiva, está na hora de criar condições para que se possa avançar no caminho já definido na legislação – que diz que tendencialmente deve haver equipas dedicadas ou fixas de médicos nestes serviços.

Na prática, este modelo (que já é seguido nos EUA e em vários países europeus) permitiria que os hospitais escolhessem e contratassem directamente os médicos que estão na linha da frente com base no seu perfil e vocação que e lhes pudessem pagar “um pouco mais do que o standard”, explica.

O modelo parece simples e até está consignado num despacho governamental de 11 de Agosto de 2014. O despacho estipula que, até ao final de Junho próximo, os hospitais devem organizar equipas de profissionais dedicados, ou seja, “que trabalhem na sua totalidade ou maioritariamente apenas nos serviços de urgência, sobretudo nos períodos do dia de maior procura”.

As equipas dedicadas até já existem em 5% dos SU e em 49%  dos hospitais já adoptaram um modelo misto. Portanto, mais de metade dos SU não segue já o modelo clássico, que soma os médicos de todas as especialidades, acentua Artur Paiva.

O problema é que, até à data, ainda não saiu qualquer regulamentação da legislação e, sem isso, não é possível começar a recrutar individualmente os médicos necessários, sem depender de burocráticos e demorados concursos regionais e nacionais.

Mas há profissionais que estão dispostos a trabalhar só na urgência, um serviço reconhecidamente stressante e desgastante? João Sá, director da urgência do Hospital de S. João, no Porto, garante que sim. Aliás, ele é a prova de que um médico pode dedicar-se apenas à urgência e sentir-se muito realizado. Aos 60 anos, cheio de energia, acredita piamente que as equipas dedicadas nos SU não são só boas para os profissionais, mas são também “ o melhor para o cidadão”. A actividade é desgastante, é certo, mas é possível “minorar o desgaste” e pôr os médicos “felizes a trabalhar aqui”, assegura, sorrindo. O que é preciso, prescreve, é “organização, muita organização”. E isso apenas se consegue com equipas fixas, afirma, convicto.

Este modelo não é, porém, pacífico. Os responsáveis da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna estão contra e consideram que não passa de “uma completa mistificação”. “O médico “urgencista” entra em exaustão [burnout] em poucos anos, pelo que o modelo não perdura no tempo”, garantem.

“O problema do burnout é um problema de organização e a organização é que traz felicidade às pessoas”, retorque o director do SU do S. João, serviço por onde passam, em média, cerca de 440 doentes por dia. “O que é melhor para um cidadão? Ser atendido por um médico que faça urgência com regularidade, por mote próprio, ou não?”, Pergunta. 

“O modelo dedicado diferencia as pessoas”, corrobora o enfermeiro director, Paulo Mota, que trabalha na urgência do S. João há 24 anos e, aos 47, não parece acusar desgaste: “ Tudo tem a ver com dedicação e o que se gosta de fazer”. “Quanto mais se faz uma coisa, melhor se faz. O volume faz a excelência”, remata Artur Paiva.

Médicos foram saindo
O Hospital de S. João, no Porto, foi, aliás, um dos primeiros do país a adoptar este modelo de funcionamento no SU. Mas, nos últimos anos, alguns destes médicos “dedicados”, que chegaram a ascender às três dezenas, foram saindo e agora são apenas 23 os que ali trabalham a tempo inteiro. As restrições nas contratações e a falta de incentivos (não só financeiros, mas também de formação e de progressão na carreira, frisa João Sá) não têm permitido repor o número inicial. O director da urgência diz que “precisava, no mínimo, de mais seis médicos destes” e que há mesmo o risco de que o modelo dedicado “perca sustentabilidade”. 

No início o recrutamento era mais fácil. Quando este modelo começou a ser aplicado, era possível seleccionar pelo perfil e oferecer uma remuneração acima do valor habitual. Mais tarde, isto deixou de ser possível. Os concursos agora são por especialidade e a remuneração é igual para todos. Hoje, aquilo que se pode oferecer a um jovem médico especialista é um salário de 2780 euros brutos, o que dá cerca de 1700 euros limpos, calcula João Sá.

Artur Paiva recorda outro argumento para defender a sua tese. Ao contrário do que acontece com os médicos, desde há muito que os SU “têm um quadro específico” de enfermeiros e assistentes operacionais. Na sequência das últimas negociações, ficou convencionado que os médicos fazem 18 das suas 40 horas semanais nos SU (os chamados “bancos”). Mas na prática muitos não fazem urgência porque a legislação portuguesa permite que depois dos 55 anos de idade possam optar por recusar este trabalho (e a partir dos 50 anos podem deixar de o fazer à noite).

Resultado? Como a profissão está envelhecida, o alargamento dos horários não serviu de grande coisa. E em alturas de picos de procura e sobrelotação não há flexibilidade para adaptar horários. Veja-se o que aconteceu no Natal passado, altura em que começaram a ser noticiadas as longas horas de espera em algumas urgências. Muitos profissionais foram de férias e instalou-se o caos. No S. João, a procura também excedeu em muito o normal (no dia 27 chegou aos 580 doentes), a espera também foi longa, mas João Sá sublinha que a equipa dedicada esteve presente: “Não permito que façam férias entre 15 de Dezembro e 15 de Janeiro”.

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