Quem não se recorda da Kodak?

Popularizou a fotografia, criou slogans inesquecíveis e foi um ícone americano antes de falir. Agora, será também uma marca de telemóveis.

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Imagem da fábrica da Kodak nos EUA, no início de 2013, quando a empresa pediu protecçao de credores. Um momento para a empresa recordar Carlo Allegri/Reuters

Há marcas que não se esquecem, mesmo quando a empresa que as criou vai à falência e volta. Uma delas é a Kodak, a multinacional americana de material fotográfico. Uma pesquisa no YouTube mostra que um dos conhecidos slogans – “momentos Kodak” – serve de título a uma panóplia de vídeos. Alguns são muito recentes e compostos por uma sucessão de fotografias, de festas, férias, pessoas sorridentes. Precisamente aquele tipo de momentos “para mais tarde recordar” (é um outro slogan da Kodak, familiar para quem quer que tenha visto televisão na década de 1990).

É muito improvável que alguma das imagens naqueles vídeos tenha sido tirada com uma Kodak. As máquinas são agora consideradas pequenas antiguidades e itens de colecção. No site de classificados OLX, vendem-se por preços que oscilam entre os dez e os 100 euros. Algumas são da primeira metade do século, dos tempos em que a Eastman Kodak Company praticamente inventou o mercado da fotografia doméstica. Outras são das últimas décadas, quando a empresa subestimou a rapidez com que os consumidores iam abandonar os rolos fotográficos e se deixou ultrapassar, sobretudo pela concorrência asiática. Isto já depois de ter inventado a fotografia digital, na década de 1970.

O ano que agora começa ficará na longa história da empresa como aquele em que vai regressar aos consumidores. Actualmente, o negócio assenta em serviços e produtos para clientes empresariais. Mas a companhia fez um acordo de licenciamento da marca com uma empresa inglesa chamada Bullitt, que passará a fabricar e comercializar telemóveis, tablets e câmaras digitais Kodak. Os detalhes do negócio não foram revelados.

A Bullitt faz aparelhos electrónicos com marcas conhecidas de outros sectores – por exemplo, os telemóveis com a marca Catterpillar, a conhecida empresa de maquinaria pesada (e de vestuário). Neste caso, os telemóveis são apresentados como muito resistentes e apropriados para uso em condições duras. 

O primeiro telemóvel Kodak será apresentado esta semana, na Consumer Electronic Show, em Las Vegas, a mais importante feira de electrónica de consumo do mundo. Para já, não foram divulgados muitos detalhes. Um comunicado recente da Bullitt diz que o sistema operativo será Android, e que o aparelho terá aplicações para editar fotografias que foram desenvolvidas especificamente para este modelo. 

Máquina de cartão
“Você aperta o botão, nós fazemos o resto” – foi o slogan das primeiras máquinas Kodak destinadas ao grande público. Foram lançadas em 1888, quando o fundador da empresa, George Eastman, já acumulava vários anos a transformar o mundo da fotografia. 

Eastman, um jovem das zonas rurais de Nova Iorque que desistira do liceu, inventou em 1879 um aparelho que permitia a produção em massa de chapas fotográficas secas. Estas, por sua vez, tinham sido criadas anos antes em Inglaterra e permitiam fotografar de forma mais fácil do que os métodos até então usados. Para vender as chapas em larga escala, criou, em sociedade com um fabricante de chicotes para charretes, a Eastman Dry Plate Company, que se viria a tornar a Eastman Kodak Company, nome que ainda hoje é o da empresa. Poucos meses após fundar a empresa, largou o emprego de bancário.

Desde o início, Eastman estava ciente da importância da publicidade para fazer o produto chegar aos consumidores, bem como da necessidade de conseguir uma grande escala. A internacionalização começou logo em 1875, com um escritório em Inglaterra de venda por atacado de filmes fotográficos. Também percebeu que devia apostar no desenvolvimento tecnológico: em 1886, começou a empregar cientistas a tempo inteiro.

Em 1900, a Kodak lançou as máquinas fotográficas Brownie. Feitas em cartão, custavam apenas um dólar, um preço suficientemente baixo para que pudessem chegar ao grande consumo. 

Ao longo do século XX, a Kodak cresceu, diversificou os negócios, simultaneamente criando novos produtos para consumidores e fornecendo serviços a clientes empresariais. Tornou-se uma empresa gigante e um dos símbolos da prosperidade e modernidade da vida americana depois da II Guerra Mundial. 

Em 1962, as vendas da empresa nos EUA ultrapassaram pela primeira vez os mil milhões de dólares, de acordo com a história oficial da empresa. Empregava 75 mil pessoas em todo o mundo (viriam a ser 145 mil década e meia mais tarde). Naquele ano, o astronauta John Glenn tornou-se o primeiro americano a orbitar a Terra, já depois do cosmonauta russo Yuri Gagarin o ter feito. Para registar a façanha, Glenn levou consigo uma Kodak. 

Falência e reencarnação
A 10 Janeiro de 2012, a Kodak fez dois anúncios: ia fazer uma reestruturação e tinha decidido processar a Apple e a HTC por questões de propriedade intelectual. Ambas são fabricantes dos telemóveis cujas câmaras contribuíram para a queda da empresa. Nessa altura, já muitos antecipavam, e com razão, que o próximo passo seria uma falência ordenada e a protecção de credores. Este processo de falência começou escassos nove dias depois, abrangendo a empresa e subsidiárias nos EUA, mas deixando de fora as filiais noutros países.

A demora na transição para o digital – e a maior rapidez neste processo de rivais como a japonesa Fujifilm – teve um papel central no esboroar do negócio. Porém, a história não é tão simples como a de uma grande empresa que ficou parada no tempo e viu uma nova invenção passar-lhe ao lado.

A fotografia digital foi alvo de estudos de mercado por parte da administração, que queria perceber o possível ritmo de adopção da tecnologia. A Kodak chegou a liderar o mercado americano de máquinas digitais e até lançou um serviço de partilha de fotografias na Internet. Ainda antes disto, há a ironia de a primeira máquina digital ter sido inventada nos laboratórios da Kodak, em 1975. Era um aparelho grande e pesado, criado a partir de peças de outros equipamentos, e que guardava as fotografias na fita de uma cassete áudio acoplada à parte lateral. As imagens eram a preto e branco. Tinham de ser vistas numa televisão.

O grande negócio da Kodak não eram as máquinas, mas os rolos. Da mesma forma que (é um exemplo clássico) o negócio da Gillette não é vender os equipamentos de barbear, mas as lâminas de substituição. Este é o tipo de negócio que não seria fácil para a empresa replicar num mundo de máquinas digitais.

Depois de encomendarem o estudo sobre a adopção da nova tecnologia, os gestores ficaram convencidos que teriam muitos anos para transformar a empresa. Em parte, contavam com uma grande procura de rolos fotográficos por parte dos consumidores asiáticos, que acabou por não acontecer. Ainda assim, em 2004, um ano depois de as vendas de máquinas digitais terem ultrapassado pela primeira vez as analógicas, a Kodak disputava a liderança do mercado americano com a japonesa Sony.

Houve outros problemas a afectar a empresa. Por exemplo, tinha tentado lançar um negócio na área farmacêutica, para aproveitar o desenvolvimento de produtos químicos que já fazia. Foi um fracasso e as operações foram vendidas na década de 1990. Os presidentes executivos sucederam-se, cada um com novas ideias sobre em que devia assentar o negócio da empresa. Para além da fotografia, a Kodak tinha negócios na área da imagiologia médica, da impressão (profissional e para consumidores), dos efeitos especiais para cinema e muito mais. A empresa ia perdendo foco. A crise financeira de 2008 agravou a situação. 

Dois anos e alguns meses depois de ter entrado em falência - um período durante o qual se manteve a funcionar - a Kodak ressurgiu, mas como uma sombra do que fora. Boa parte das operações tinham sido vendidas ou transformadas em empresas autónomas. A Kodak concentrou-se em serviços empresariais de impressão e empacotamento e começou a tentar trilhar o caminho da sustentabilidade. Os dados financeiros mais recentes indicam que terminou 2013 com quase dois mil milhões de dólares de lucro. Nos primeiros nove meses de 2014, teve 81 milhões de prejuízo. 

No ano passado, e graças à pressão de alguns conhecidos realizadores de Hollywood, alguns estúdios de cinema comprometeram-se a comprar película cinematográfica à empresa, independentemente de esta vir ou não a ser usada. Mesmo que seja mais um negócio prestes a ser enterrado pelo digital, a empresa já conseguiu provar que a falência não foi o último momento Kodak.

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