O que colhe um país que semeia cadáveres, perguntam os mexicanos

Milhares no México saem à rua para dizer que estão fartos da violência, da corrupção e da impunidade. “Cansei-me de ter medo” é a palavra de ordem daqueles que querem resgatar o país das mãos dos narcotraficantes.

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Milhares em protesto na Cidade do México contra a violência do narcotráfico REUTERS/Edgard Garrido

O desabafo do Procurador-geral do México, Jesús Murillo Karam, que terminou abruptamente uma conferência de imprensa dizendo estar “cansado” e “farto” das perguntas sobre o desaparecimento de 43 estudantes de uma escola rural de magistério, transformou-se num instante no grito de toda a sociedade mexicana – que nas ruas, na imprensa e nas redes sociais tem demonstrado o seu cansaço da violência, da corrupção e da impunidade que tornam insuportável a vida quotidiana e minam a confiança nas instituições do país.

“Cansei-me”(ou #YaMeCansé) passou a ser a expressão informal do lamento dos mexicanos: uma palavra de ordem na manifestação de repúdio e ao mesmo tempo uma promessa de acção, uma senha, uma convocatória. O país não suporta mais viver em silêncio, complacente enquanto o narcotráfico vai tomando conta do país, ameaçando milhões de inocentes e pondo em risco a sobrevivência do Estado. Os mexicanos querem resgatar a cidadania e a democracia. “Cansei-me do medo”, diz o monumental desabafo pichado numa das paredes do edifício da procuradoria do país.

O procurador-geral é, desde o seu infeliz comentário, um dos alvos dos protestos. “Murillo, tu estás cansado e nós estamos pelos cabelos: renuncia”, exigiram os manifestantes, horas depois de o ouvirem confirmar a notícia que não estavam preparados para aceitar: que os jovens estudantes “normalistas” (o nome dado às escolas rurais que formam os professores do ensino básico), desaparecidos na localidade de Iguala depois de um confronto com a polícia municipal, tinham sido entregues aos sicários dos Guerreros Unidos, um cartel do narcotráfico, e que estes se tinham encarregado de os matar.

Com impressionante frieza, Murillo divulgou ao país os detalhes das confissões daqueles que participaram no massacre dos jovens. Os “normalistas” foram abatidos a tiro numa lixeira, os seus corpos foram queimados numa pira com pneus e desperdícios, ensacados e atirados ao rio, informou, acrescentando que a identificação dos cadáveres será missão praticamente impossível.

As palavras do procurador puseram fim ao mistério que mantinha o México em suspenso desde o fim de Setembro – o que aconteceu aos estudantes, estão vivos ou mortos? Mas as informações não apaziguaram um país farto da violência do narcotráfico e da ineficiência do Governo.

Da mesma forma que os pais rejeitaram a versão oficial dos acontecimentos que os levaria a desistir de procurar os filhos, também os mexicanos recusam assimilar a brutalidade da morte dos “normalistas” como uma tragédia inevitável. Depois da conferência de imprensa de Murillo, as ruas da Cidade do México – e muitas outras cidades do país – encheram-se de manifestantes, num movimento espontâneo e pacífico por justiça.

Quem se resigna esquece
“O que Murillo queria era habituar a população à ideia de que já não há mais nada a fazer pelos 43 [estudantes], de que devemos parar de os procurar e deixar de protestar. Porque quem aceitar a ideia, acabará por se resignar, e quem se resignar acabará por esquecer. Não podemos fazer isso: não temos o direito ao esquecimento, temos de continuar a exigir os nossos filhos e irmãos vivos”, explicava Mayra, uma das manifestantes que marchou desde a procuradoria até ao Zócalo, a simbólica praça central da Cidade do México.

A revolta dos mexicanos e a mobilização pelo resgate do país das mãos do narcotráfico foi de tal maneira impressionante que até os jornais desportivos relataram a manifestação. Numa edição esgotada, a capa do Record de domingo era um pano negro com letras brancas: “O México está farto. O México está de luto. A corrupção e impunidade fazem com que ninguém seja responsável de nenhum assassínio, desvio de recursos, roubos e mentiras”.

No fim do protesto, um grupo de encapuçados pegou fogo a uma das históricas portas de madeira do Palácio Nacional, a sede da presidência (o chefe de Estado, Enrique Peña Nieto, já tinha partido para a China em visita oficial). O acto levou a um reforço do aparato policial, e a uma subida da tensão no local: “Podemos permitir que que queimem 43 estudantes numa fossa, que morram 49 crianças num incêndio numa creche, ou que se abra fogo sobre 40 adultos dentro de um casino, sem que haja um pingo de justiça. Mas que não ocorra a ninguém atacar uma porta, isso sim é intolerável’”, ironizava no domingo o colectivo estudantil 132 Global, sobre a actuação das autoridades, que detiveram 14 pessoas.

Em resposta ao PÚBLICO, a colunista do blogue Animal Político, América Pacheco, tentou enquadrar os acontecimentos em Iguala e resumir o estado de espírito do país. “O que explica esta desumanização”, diz, não tem nada a ver com a pobreza, que “tem sido a realidade do estado de Guerrero ao longo dos séculos”. O que há de diferente agora, aponta, é o “maldito narcotráfico, de que todos – todos – somos culpados. Em certa medida, todos fazemos parte desta cadeia, somos elos da corrente, não estamos alheios”.

A questão, sublinha América Pacheco, ultrapassa os 43 estudantes “normalistas” que permanecem oficialmente desaparecidos. Nos últimos dez anos, o número de mexicanos desaparecidos por acção do narcotráfico já ultrapassa as 24 mil pessoas. Oficialmente, foram declaradas mais de 100 mil mortes por “violência associada ao crime organizado” desde 2007.

“O que colhe um país que semeia corpos?”, perguntam os manifestantes, em cartazes escritos à mão.

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