Jean-Marie Straub e a recitação da (outra) vida

Kommunisten, apresentado fora de concurso em Locarno, é exemplar do dispositivo artístico de um cineasta "minoritário" que continua a articular vida e política.

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O título é, por si só, programático do cinema artesanal e político (de artesanato político ou de política artesanal?) que Jean-Marie Straub e Danièle Huillet sempre reivindicaram: Kommunisten. Se falamos da dupla apesar de Straub rodar sozinho desde a morte da sua companheira e cúmplice em 2006, é porque Kommunisten, mostrado fora de concurso em Locarno, anexa um segmento rodado este ano em Rolle, na Suíça (onde quase juraríamos ouvir a voz de Godard em off), a cinco outros segmentos "reciclados" de obras rodadas em vida de Huillet . (O que aliás não é novidade, visto que a dupla propôs sempre múltiplas montagens para alguns dos seus títulos.)

Num desses segmentos, oriundo de Fortini/Cani (1976), o escritor e poeta Franco Fortini evoca "a recitação da vida" e nessa frase resumem-se os dispositivos artificiais, programáticos e hieráticos do cinema Straub/Huillet, dessa "recitação distanciada" de uma vida filtrada pela arte, ficam instantaneamente revelados. Na articulação da vida e do amor com a política, no cruzamento do humano e do divino, do intemporal e do transitório - é nesse limbo que Straub e Huillet sempre fizeram questão de estar, nessa ideia de "cinema minoritário" que fez da dupla francesa um dos nomes maiores do cinema de autor europeu da segunda metade do século XX. 

Kommunisten, falado em italiano, alemão e francês e apresentado sem legendas numa cópia de trabalho na qual faltavam apenas resolver pormenores técnicos, está longe de ser apenas um "testamento" ou uma "nota de rodapé" à sua carreira. Mesmo que (como quase todos os filmes de Straub/Huillet) precise de notas de rodapé para que os longos planos fixos de natureza ou de urbanidade sonorizados por longas dissertações romanescas ou teóricas, retiradas de Elio Vittorini, André Malraux ou Hölderlin, possam ser inteiramente apreendidos. Como Barbara Ulrich, colaboradora de longa data de Straub, disse ao apresentar Kommunisten, "este filme é uma oração, uma invocação de uma outra vida possível". Não por acaso, as últimas palavras ditas no filme são-no por Danièle Huillet ela própria, num excerto de Schwarze Sünde (1989): "Novo mundo". 

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