Luc Besson provou que é possível fazer cinema à americana em França, e igualmente mau

Oito mil pessoas aplaudiram a defesa da liberdade e da tolerância do presidente do festival, numa noite de abertura com Jean-Pierre Léaud e Luc Besson

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Luc Besson provou que é possível fazer-se à americana em França, e igualmente mau

É bonito ouvir estas palavras na abertura de um festival de cinema: o governo federal suíço aumentou a contribuição financeira ao Festival de Locarno e manifestou o seu apoio incondicional ao certame. Marco Solari, presidente do festival, fez questão de o dizer na noite de quarta-feira, perante o aplauso das oito mil pessoas que enchiam a plateia ao ar livre da Piazza Grande, no "pontapé de saída" da 67ª edição do festival.

Sim, é verdade que a Suíça é um país "rico", mas é igualmente verdade que é bonito ouvir que ainda há quem prefira acreditar no impacto da cultura na economia e na vida de um país. As palavras de Marco Solari, que fez questão de sublinhar a inteira liberdade de pressões políticas e económicas da direcção artística de Locarno, tinham evidentemente um destino "interno". Referiam-se à polémica levantada pelo convite do festival a Roman Polanski, que estará em Locarno na próxima semana para mostrar Vénus de Vison e dar uma master-class, e à contínua "espada de Dâmocles" da sua condenação pela justiça americana. Solari defendeu o convite e a tradição democrática da Suíça, e Polanski virá ao evento.

Mas as suas palavras explicam também porque é que Locarno consegue fazer coexistir, na mesma noite de abertura, sob o maior ecrã da Europa (26 metros de altura) instalado na Piazza Grande durante os dez dias de festival, Jean-Pierre Léaud, o actor-fétiche da Nouvelle Vague francesa, e Luc Besson, o homem que mais batalhou para que França pudesse rivalizar com os EUA como produtor de blockbusters populares. 

Léaud subiu ao palco da Piazza Grande para receber das mãos de Carlo Chatrian, director artístico do festival, o Leopardo de Carreira. O actor francês de 70 anos, que se tornou inseparável da carreira de François Truffaut - que o revelou em Os 400 Golpes e acompanhou ao longo dos anos na série de filmes com Antoine Doinel como personagem principal - evocou um dos percursos mais notáveis do cinema de autor. Rodou com "clássicos" como Godard, Bertolucci, Pasolini, Glauber Rocha; e "modernos" como Philippe Garrel, Olivier Assayas e Bertrand Bonello; quis sempre, mais do que fazer cinema, "construir uma obra que se inscrevesse num certo tipo de cinema", como um realizador ou um escritor faria. 

Filme de super-heróis de trazer por casa
Nos perfeitos antípodas de Luc Besson, que desde os anos 1980 que tem tentado provar que é possível fazer cinema popular moderno "à americana" com um qualquer "French touch". Tem-no conseguido a espaços - O Quinto Elemento será talvez o melhor exemplo - e conseguiu até criar uma pequena "linha de montagem" de séries B (que deu origem à série dos Transporter com Jason Statham, por exemplo). A abertura do festival com Lucy, que rodou em Taipei com Scarlett Johansson e Choi Min-sik (o Oldboy de Park Chan-wook), é uma tentativa de provar que os americanos não têm o exclusivo do cinema de entretenimento moderno - ainda por cima, Lucy é distribuído pela major Universal e acaba de ter um arranque de estadão nas bilheteiras americanas (chega a Portugal dia 21). 

Locarno explora alegremente estas "aparentes" contradições e elas colidem violentamente em Lucy, que tem pretensões filosóficas (Besson, na sua apresentação, citou Pascal) mas alma de filme de super-heróis de trazer por casa ou Cosmos contado aos totós. Scarlett Johansson, completamente nas suas sete quintas, é uma party girl americana em Taiwan que o acaso e o destino cruza com uma nova droga sintética que "desbloqueia" o poder do seu cérebro até a tornar todo-poderosa (nunca a ideia da estrela de cinema como uma deusa foi tão verdadeira). Chama-se Lucy não por acaso: é o nome da nossa antepassada mais célebre.

Há dois ou três momentos em que se entrevê o que Lucy podia ter sido noutras mãos, mas Besson faz dele um comic-book hiper-cinético e imediatamente descartável, tão ou mais desmiolado que os seus concorrentes americanos. Missão cumprida, provou que é possível fazer-se à americana em França, e igualmente mau; ainda assim, Scarlett é Scarlett e o seu magnetismo (aqui também literal) ajuda a que Lucy se veja sem grande fastio. E a liberdade de Locarno também é essa: celebrar o cinema, de onde quer que ele venha. Jean-Pierre Léaud disse-o ao dedicar o seu Leopardo ao público de Locarno, por estar deste lado do ecrã a ver filmes. "Mas se não se importarem eu vou ficar a tomar conta dele lá em casa por uns tempos."

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