A Dona de Casa sente-se sozinha, mas talvez não queira deixar de estar

A mulher completa a sua rotina, numa casa colorida e com a televisão sempre ligada, no meio da cidade: está na hora de esperar o marido. De 21 a 28 de Junho, no Negócio da ZDB, Raquel Castro interpreta Dona de Casa, um monólogo em que estamos longe de ser iguais.

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O trabalho doméstico que a dona de casa faz é “o trabalho imaterial das mulheres que é desvalorizado" Mariana Silva
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“Larguei o mundo dos pensamentos por qual vestido? Qual forma para o bolo?”, diz a dona de casa no seu lar cheio de azuis, verdes e amarelos eufóricos Mariana Silva
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“Estou sozinha com uma batata. Sozinhas formamos o universo” Mariana Silva
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Não há muito que saibamos sobre esta mulher Mariana Silva

À espera cá fora, no pátio do Negócio, da galeria Zé dos Bois (ZDB), em Lisboa, espera-se que se abra a porta. Não é uma mera sala de espectáculos, é realmente uma casa e quem vem abrir a porta é a mulher que lá vive. É aqui que passa o dia todo, sozinha, a trabalhar: é Dona de Casa e o seu trabalho é esperar.

Dona de Casa, um monólogo de Esther Gerritsen, estreia este sábado e aí vai estar durante uma semana, encenado e interpretado por Raquel Castro. A actriz já tinha estado neste palco com Mariana Tengner Barros em Uma Retrospectiva, um trabalho mais inclinado para a performance do que para o texto dramatúrgico. Agora lança-se na sua primeira experiência como encenadora de uma peça de outro autor. “Sempre que lia e relia o texto sentia este ímpeto [de o interpretar] e a certa altura achei que fazia sentido ser eu a encená-lo: tinha um carinho tão grande por ele que achei difícil que alguém que viesse de fora abraçasse o projecto com tanto amor”, diz Raquel Castro.

Há cinco anos leu pela primeira vez Dona de Casa e ficou “fascinada” com o ritmo rápido da escrita, “em zapping”, e principalmente com os temas que levanta imediatamente, explica: a solidão de uma mulher que passa o dia sozinha em casa à espera do marido e a sua existência que se vai confundindo com a da casa, dos móveis e dos electrodomésticos - o universo em que vive e de que não sabe se quer sair.

“Estou sozinha com uma batata. Sozinhas formamos o universo”, diz esta mulher ao confrontar-se com todo o trabalho doméstico acabado e com a única pequena coisa que lhe falta fazer até à chegada do marido, umas horas depois: descascar uma só batata. “É quando ela descasca a última batata, nesse tempo todo até à chegada do marido que a vida acontece: os devaneios, as fantasias, os sonhos, a loucura, o querer ou não querer mudar de vida. Esperar é a vida dela”, conta a actriz.

E no entanto, para além dos seus devaneios, os poucos que nos mostra em uma hora em palco, não há muito que saibamos sobre esta mulher. Sabemos que tem esta rotina doméstica, tem o marido – “não tenho uma relação, tenho-o a ele”, explica – a casa, a televisão com o seu apresentador de talk shows, uma pessoa sensata, e com o apresentador de concursos, que incentiva os concorrentes a correrem riscos. “Se calhar ela é mais que isso, mas não tem oportunidade de o mostrar. Acho que ela encontrou um conforto nessa realidade”, diz a actriz, acrescentado que não há uma interpretação única para este monólogo – Raquel Castro, que conhece esta mulher há cinco anos e que se confrontou com ela numa residência artística de 22 de Maio a 20 de Junho na ZDB, diz que continua sem saber quem ela é.

O trabalho doméstico que a dona de casa faz é “o trabalho imaterial das mulheres que é desvalorizado, mas que é essencial ao assegurar a continuidade das coisas”, diz Raquel Castro, recordando como isso a levou a pensar algumas questões essenciais relacionadas com o trabalho imaterial e criativo: “O que é o trabalho? O que é produzir? Ser produtivo é fazer aquilo que é palpável?”, questiona-se a actriz.

Foi a vida dos dias de hoje, muito ligada à vida nas cidades que orientou Raquel Castro na interpretação desta mulher: “estamos tão sozinhos, tantas vezes, numa cidade tão grande”. A par disto, a permanente sensação de se estar com outras pessoas: há no texto a fantasia de que se está sempre ligado a qualquer coisa e a televisão [em palco] é isso. Se o texto fosse escrito agora ela teria um computador com internet “, diz.

“Larguei o mundo dos pensamentos por qual vestido? Qual forma para o bolo?”, diz a dona de casa no seu lar cheio de azuis, verdes e amarelos eufóricos a que se juntam os sons da televisão sempre ligada. Tem tudo o que precisa: o descascador de vegetais, o abre-latas, a borrachinha para pôr no bule de chá para que não pingue – “só quero o meu aparador, não quero sonhos, não quero experiências maravilhosas”, acaba por dizer. “Ela quer e não quer”, explica Raquel Castro, “está a lutar um bocado consigo própria, isso para mim é evidente, e dá-me esperança. Ela pode vir a mudar”.

Para a actriz e encenadora, esta mudança que a dona de casa não sabe se quer ou não fazer leva-nos às questões de género, “a diferenças que nunca ficaram resolvidas” e que num “Portugal machista, com desigualdades muito grandes” é pertinente por continuar actual. “Se calhar não estava muito desperta para estas questões, mas comecei a reparar que todos os dias há notícias nos jornais sobre mulheres discriminadas. Ainda esta semana se soube que há empresas em que as mulheres não podem engravidar”, lembra a actriz que assume não gostar de se ver como “feminista”.

“Quando se fala em feminismo, quando se fala em luta de género, há sempre um estereótipo bafiento, mas a verdade é que há muitas coisas por resolver e por pensar. É importante trazer estas questões para o dia-a-dia, e torná-las mais banais”, diz. “Igualdade? Estamos muito longe disso”.

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