O que aconteceu na noite em que Sylvia Plath ligou o gás e enfiou a cabeça no forno

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Ted passou o resto da vida atormentado pelo suicídio de Sylvia Reuters

Poema inacabado e inédito do marido da poetisa, Ted Hughes, revelado recentemente, revisita os últimos momentos de Plath e os acontecimentos dos dias anteriores, quando ele recebeu, antes do tempo, uma nota de suicídio. Last Letter é uma espécie de epílogo perfeito para uma tragédia de contornos shakespearianos: uma confissão

"O que aconteceu naquela noite? Na tua definitiva noite?" A pergunta é de Ted Hughes, o poeta inglês que morreu em 1998, e abre a última mensagem que escreveu à mulher, a poetisa norte-americana Sylvia Plath. Last Letter é um longo poema de 150 linhas, reescrito, reescrito, reescrito e sempre inacabado, que Sylvia já não pôde ler – suicidou-se em Fevereiro de 1963, aos 30 anos, alguns meses depois de ele a ter abandonado para ir viver com outra mulher.

Se a história de Ted e Sylvia fosse uma tragédia shakespeariana, Last Letter seria uma espécie de epílogo perfeito: o monólogo do marido atormentado pela culpa, dirigindo-se à mulher morta e desfiando as suas penas como um espectro errante que revisita os gestos que fez e os cuidados que não tomou. "Então, uma voz, como uma arma escolhida/ou uma injecção calculada,/friamente deixou essas cinco palavras/no mais fundo dos meus ouvidos: "A sua mulher está morta"".

Naquela noite, a última noite, os biógrafos dizem que Sylvia preparou o pequeno-almoço que os filhos deviam tomar quando acordassem, ligou o gás e meteu a cabeça no forno. Mas o que aconteceu realmente nessa noite para lá dos dados factuais que constam dos relatórios da ciência forense? O poema/carta de Ted Hughes (1930-1998) é uma espécie de investigação poética das últimas horas de Sylvia na casa de Primrose Hill – e uma tentativa para compreender as motivações que possa ter tido. Pode ser a peça que faltava ao puzzle de um dos mais controversos acontecimentos da literatura moderna.

Segundo o poema, Sylvia terá escrito uma carta de suicídio, que Ted, por excesso de zelo dos correios britânicos, recebeu antes do tempo, no mesmo dia em que Sylvia a expediu. Era uma sexta-feira. Alarmado, Ted dirigiu-se à casa que tinha abandonado para ir morar com a também poetisa Assia Wevil. Confrontou Sylvia. Ela desvalorizou o assunto e queimou a nota de suicídio num cinzeiro – "com um estranho sorriso", lê-se no poema. Ted passou, depois, o fim-de-semana com uma amante, pensa-se que com Susan Alliston (outra poetisa), no mesmo quarto de Rugby Street onde tinha estado com Sylvia na lua-de-mel. Dois dias depois, a 11 de Fevereiro, Sylvia suicidou-se. Ted imagina, no poema, que a mulher passou esse tempo a telefonar-lhe para casa, possuída pelo ciúme e sem obter nenhuma resposta.

"O que nessa noite aconteceu no interior das tuas horas/é tão obscuro como se nunca tivesse acontecido./Acumulação da tua vida toda,/esforço inconsciente como um nascimento/forçando a membrana de cada lento segundo/até ao segundo seguinte, só aconteceu/como se não pudesse ter acontecido,/como se não estivesse a acontecer", escreveu Ted Hughes, como quem tenta preencher o vazio das últimas horas de Sylvia.

Completar a história

"É uma carta de arrependimento e remorso", disse Melvyn Bragg, o amigo da viúva de Ted, Carol, que encontrou o poema num dos cadernos do poeta que estão à guarda da Biblioteca Britânica. "Ainda bem que se tornou público. A história fica completa", acrescentou Bragg ao jornal britânico TheTelegraph.

Escrito provavelmente durante a década de 1970 (Ted refere-o numa carta que, em 1998, escreveu ao Nobel Seamus Heaney), Last Letter foi publicado em Outubro pela revista New Statesman. Existem pelo menos três rascunhos diferentes do poema, todos semeados de inúmeras rasuras e emendas. Em Inglaterra, a revelação do documento causou comoção e teve honras televisivas, tendo uma parte de Last Letter sido lida pelo actor Jonathan Pryce, num programa que o Channel 4 dedicou ao achado.

Al Alvarez, um crítico literário que foi amigo do trágico casal, também não tem dúvidas: "O poema é uma confissão: ele [Ted Hughes] aparece como um tipo que, no banco dos réus, se declara culpado. É uma coisa muito forte, mas não está terminado. É evidente que Ted passou o resto da vida atormentado pelo suicídio de Sylvia, o que talvez explique o facto de o poema não ter sido publicado enquanto ele foi vivo", escreveu Alvarez no jornal The Guardian.

"É um poema que parece chegar a um lugar mais profundo e ser mais sombrio do que qualquer outro dos poemas que Hughes escreveu", disse durante o programa do Channel 4 Carol Ann Duffy, uma conceituada poetisa inglesa. "É quase insuportável de ler. Mostra de que modo uma tragédia afecta a vida das pessoas que têm a infelicidade de contactar com ela, e como um suicídio pode deixar cicatrizes naqueles que têm de continuar a viver depois da morte. É um pouco como estar a olhar para o sol enquanto ele está a morrer", concluiu.

Fim de história, então? Nem por isso.

Nuvem trágica 

Ted Hughes e Sylvia Plath conheceram-se na Universidade de Cambridge, em meados da década de 1950. Como é de regra que suceda em todos os amores fatais, apaixonaram-se ao primeiro olhar e casaram-se quatro meses depois. Tiveram dois filhos, Frieda e Nicholas. Mas Ted era infiel, Sylvia era emocionalmente frágil e a relação começou a desfazer-se numa torrente de "gritos e morte", conforme consta do rascunho de um poema de Ted revelado em 2008 pelo Times. Sobre o casal pareceu, pois, ter-se instalado uma nuvem trágica, a qual continuou a colher as suas vítimas muito depois do dramático suicídio de Sylvia.

Se há nomes que parecem capazes de convocar os demónios que deambulam em busca do exacto local onde deflagrará a próxima tragédia, esse nome há-de ser Assia Wevil – o nome da mulher pela qual Ted tinha abandonado Sylvia soa estranhamente semelhante a "evil", a palavra inglesa para o "mal". Assia suicidou-se seis anos depois de Sylvia, a 25 de Março de 1969: ligou metodicamente o gás do forno e imitou o gesto de Sylvia depois de ter assassinado Alexandra Tatiana Elise, a filha de quatro anos que tinha tido com Ted. No ano passado, em 16 de Março, 40 anos depois, também Nicholas, o filho de Sylvia e Ted, se suicidou na sequência de uma depressão.

Ted Hughes já não assistiu à morte do filho, mas resistiu a tudo o resto. Legalmente casado com Sylvia à data do seu suicídio, o poeta recebeu o legado da mulher e dedicou a vida à publicação rigorosa dos seus manuscritos, cuja qualidade superava a da obra editada durante a vida da poetisa. O poemário Ariel (editado em Portugal pela Relógio d"Água) veio mesmo a ser considerado uma das melhores obras poéticas da segunda metade do século XX e, em 1981, a edição dos Poemas Reunidos valeu a Sylvia o prémio Pulitzer a título póstumo.

Apesar da devoção demonstrada pela obra daquela que fora sua mulher, Ted nunca se libertou do estigma de ter sido o causador do suicídio de Sylvia. O sobrenome Hughes foi sendo regularmente rasurado do túmulo da poetisa – e logo reposto pelo viúvo. Em 1998, com um cancro no cólon, Ted Hughes publicou Birthday Letters, um livro que vendeu meio milhão de exemplares e conquistou o Forward Poetry Prize, o T. S. Eliot Prize e o British Book of the Year. É uma reflexão poética dedicada a Sylvia Plath e à tumultuosa relação dos dois. Não se pode saber se a escrita desses poemas foi suficiente para que Ted chegasse a expurgar os fantasmas da culpa e do remorso – morreu a 28 de Outubro de 1998, sem conseguir terminar Last Letter.

Os versos publicados neste artigo foram traduzidos livremente a partir dos excertos publicados na imprensa britânica

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