Uma noite com os fantasmas de Patti Smith e Obama ao longe

Foto
Patti Smith e Robert Mapplethorpe

A cantora chegou a Viena exausta depois do furacão Sandy. Patti, que cantou a revolta, acha que hoje só o ambiente pode voltar a unir as vozes

Uma mesa e cadeira de café, um ramo de flores lá atrás, água e duas guitarras. E depois os óculos, para Patti Smith ler pedaços de Apenas Miúdos, a biografia em que conta o seu encontro com Robert Mapplethorpe (editada em Portugal pela Quetzal), em Nova Iorque, quando eram "apenas miúdos", mas anunciavam a si próprios isto, em 1969: "A década de 70 será nossa." Foi an evening com Patti Smith, dia 4 de Novembro, pequena sala do Kino Metro, Viena.

A data foi escolhida pela própria para este acontecimento inserido na Viennale, o festival de cinema da cidade austríaca (a organização entregou câmaras a vários dos realizadores do festival para filmarem o espectáculo, entre eles o português Miguel Gomes). É que a 4 de Novembro (de 1946) nasceu o artista da sua vida, Mapplethorpe, e a 4 de Novembro (de 1994) morreu o amor da sua vida, Fred "Sonic" Smith. As coincidências não acabam, Mapplethorpe morreu a 9 de Março de 1989 e foi num 9 de Março (de 1976) que Patti conheceu Smith. "Acho que foi uma espécie de vingança de Freddie", graceja Patti em cima do palco. Pelos vistos, não está apenas com uma mesa, uma cadeira e duas guitarras, mais a água e os óculos.

O espectáculo está povoado pelos fantasmas de Patti, aqueles que ela convoca com as canções, os textos e que podem ser a mãe, o pai, o marido, o amigo, e ainda Rimbaud, e ainda William Blake, e ainda Allen Ginsberg e...

No dia 5 de manhã, Patti encontrar-se-ia com um grupo de jornalistas e diria ao PÚBLICO: "Perdi muita gente ao longo da minha vida, mas não sou uma pessoa nostálgica. Aprendi a lidar com a perda da melhor maneira. Podia ficar a chorar para sempre. Mas não, tento trazer as pessoas que perdi para o meu presente, tento comunicar com os meus mortos. Sei o que é conversar com o meu marido, por isso falo com ele, quando se trata de resolver um problema da minha filha. Falo com a minha mãe, quando há um problema qualquer de saúde e também posso falar com um artista ou um poeta, Rimbaud ou Ginsberg. É uma coisa viva, não é uma coisa do passado."

Está bem acompanhada, por isso começou o serão no Metro Kino com Grateful, mas não se entendeu com a guitarra, que era emprestada. Os seus instrumentos ficaram em Nova Iorque, culpa do furacão Sandy, que a deixou cinco dias sem água e luz, sozinha com os gatos. Chegou a Viena emocionalmente exausta, não se quer queixar disso, porque a embaraça pensar nos países do mundo em que a calamidade é o dia-a-dia, mas de facto não se entendeu com as guitarras... "Não é culpa delas, eu é que sou muito limitada."

Foram seis (tentativas de) canções, que incluíram uma versão a capella de Because the Night que agarrou os espectadores em coro ao refrão (letra que escreveu para Freddie Smith, enquanto desesperava por um telefonema dele que não chegava), uma recitação da letra de People have the power ("tema" que lhe foi lançado pelo marido, como um desafio, enquanto Patti descascava as batatas para o jantar) e terminou com os uivos de Banga, do último disco, canção de homenagem ao cão de Pôncio Pilatos em Margarita e o Mestre, de Bulgakhov, e o desafio: Believe or explode!. Entre elas, as evocações gloriosas e líricas, doces e ácidas (porque Mapplethorpe reluzia em LSD) da Nova Iorque dos anos 70 contidas em Apenas Miúdos. A chegada, no Verão de 1967, quando morreu John Coltrane: a Nova Iorque de St Marks Place com White Rabbit a ecoar do Electric Circus, a cidade com "a luz do expressionismo abstracto"... Dormia na rua, nos jardins, até no cemitério. Um dia estava a morrer de fome e um desconhecido pagou-lhe uma sandes. Era Allen Ginsberg, que julgava que podia ter sorte com o "bonito rapaz" com que acabava de se cruzar. Quando descobriu que ele era ela, não obrigou Patti a devolver a sandes e foi o início de uma bela amizade. Noutro dia foi salva "de uma situação difícil" por um rapaz encharcado em LSD e acabaram os dois a dizer um ao outro, ao mesmo tempo: "Posso dormir em tua casa?" Tinham-se encontrado, Patti e Robert. Ela dava-lhe Dylan (e uma sopa de alface que não se quer provar), ele respondia-lhe com o som da Motown. Um dia mais tarde ele fotografava-a para a capa de Horses, evidenciando a luz que apanhava a sua camisa branca e levando-a a imitar a pose de Frank Sinatra pendurando o casaco atrás do ombro. "Quando olho para essa foto, não me vejo a mim, vejo-nos a nós."

Foi na tour de Horses que conheceu o futuro marido, olhou e pensou: "É com ele que me vou casar." "Ele era um revolucionário." Foi Freddie que chegou a casa e disse: "Tricia, "people have the power", pensa nisso..." Hoje, Patti diz que o povo tem muito menos poder, porque ainda não descobriu o poder que pode ter, se se unir numa causa. Os EUA, especificamente, perderam a capacidade de liderança revolucionária. Os artistas calaram-se "com medo, puro medo", nos anos Bush, diz, e a América, que teve a sua quota-parte de revoluções, "perdeu o sentido de compreensão sobre o que as outras culturas precisam". Patti sempre achou aborrecido, no passado, o fascínio dos europeus perante o clube CBGB nova-iorquino ("Arranjem vocês o vosso CBGB", dizia aos miúdos nos concertos), fascina-a, por isso, hoje os statements de revolta que surgem através das Pussy Riot.

Mas qual foi o sortilégio dos anos 1960-1970? "O Vietname juntou toda a gente, independentemente de sermos democratas ou republicanos. Deu a todos um espaço de união, para além do estatuto social, económico, religioso. Por isso as pessoas pareciam conseguir tudo. E culturalmente todos ouvíamos os mesmos discos, Beatles, Dylan, Neil Young, e os mesmos programas de rádio. As canções ecoavam as nossas aspirações. Agora há tantas possibilidades - a democracia é maravilhosa, mas o sentido de liderança fica em perda... - que as pessoas já não se conseguem encontrar num objectivo unificador. A Internet dá a sensação de que uma causa pode ser conhecida globalmente, mas a nova geração tem de aprender que isso não chega. É preciso que as pessoas sejam afectadas directamente para se unirem. A única coisa, acho, que pode conseguir isso é a causa ambiental. Há cada vez mais terramotos, inundações, tempestades, doenças motivadas pelo ambiente... Espero não ser necessário uma grande catástrofe para as pessoas se unirem."

Patti está marcada pelo furacão Sandy. Acha que as sequelas da tempestade podem influenciar os resultados das eleições americanas. De um lado, ao ter afectado uma população com menores recursos, pode afectar a candidatura de Obama. "Por outro lado, vivendo nós uma situação de crise, acho que os americanos não gostam de grandes mudanças em situações dessas. Preferem jogar na estabilidade, ou seja, isso pode ser favorável a Obama" - um "bom homem em essência", mas não concorda com ele em tudo, por isso Patti abstém-se.

Mostra uma foto da casa dos anos de 1910que está a reabilitar em Rockaway, Nova Iorque: tudo ao lado foi devastado pela tempestade, mas o "casebre", como ela diz, ficou intacto. É ali que, depois da digressão de Banga, que incluirá concertos com Neil Young and the Crazy Horse, regressará a um projecto de livro sobre viagens imaginadas em que um dos capítulos se chamara Lisbon Antigua, sobre uma cidade que a fascina desde que, em criança, viu álbuns de fotografias com pescadores portugueses.

Sugerir correcção
Comentar