A grandeza será recompensada

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Sam Fermin é o projecto pessoal de Ellis Ludwig-Leone — antigo aluno de Nico Muhly, arranjador de Björk. O seu disco de estreia é o mais estranho álbum grandiloquente do ano e só pode explodir

É simples, é mesmo muito simples, é tão simples quanto isto: há um versão, seguido de uma ponte, após o que vem o refrão, de preferência em crescendo e explosivo. A sequência repete-se ao longo de três a três minutos e meio, sempre assente em sequências de acordes mais do que reconhecíveis, ao piano ou à guitarra, com um ou outro instrumento a pontuar, sublinhar, exponenciar o “sentimento” da canção. Depois basta que a cantiga passe na rádio e é ir esperar que o cheque caia na caixa do correio.

É simples, é mesmo muito simples, é tão simples quanto isto, mas no mundo dos San Fermin nada é assim: não há guitarras ou piano a fazerem de cama às canções; no centro, a pender no vazio, estão melodias de vozes (um homem e uma mulher, por vezes em dueto) e os arranjos (sopros, metais, cordas) traçam tangentes e elipses à melodia principal, com tanta pujança que a dada altura concluímos que nenhuma melodia é a principal e as nossas orelhas agitam-se à procura de algo a que se agarrar, tamanha é a profusão de informação melódica. É como se os nossos ouvidos fossem radares abalroados por mísseis que caem de toda a parte.

No mundo dos San Fermin, uma canção não dura obrigatoriamente três minutos, um ritmo não se mantém do princípio ao fim e os arranjos são tão importantes quanto uma melodia. San Fermin, o disco de estreia de San Fermin, é grandiloquente, luxuoso e o mais estranho exercício de crooning do século XXI; e San Fermin, a banda, nem sequer é uma banda. Ou é?

A questão não é sequer clara para Ellis Ludwig-Leone, o homem que se esconde por trás do nome San Fermin. Em conversa com o Ípsilon, assume de imediato que o projecto é seu, no sentido em que escreveu “toda a música” e que na altura das gravações “não pensava em San Fermin como uma banda”; aliás, os músicos que participam no disco são “amigos que [recrutou] consoante a sua disponibilidade”. “Mas desde que assinámos contrato para editar as coisas têm mudado: agora fazemos digressões como um combo de oito músicos, e posso garantir que a transição de projecto a solo para banda foi muito intensa. Eu ainda escrevo toda a música, mas agora apresentamo-nos como banda. E acho que pensamos em nós como uma banda.”

Só para esclarecer como isto é complicado, o homem com tom de barítono que canta no disco nem sequer é Ellis — trata-se de Alan Tate, que é “dos amigos mais chegados” de Ellis “desde os 15 anos de idade”. As melodias, contudo, “foram escritas a pensar na voz de Tate”, visto Ellis não gostar da sua própria voz: “Ele tem sido comparado ao Matt Berninger [vocalista dos National, que são a clara influência da canção Torero] e ao Bill Callahan, comparações que me parecem justas.” 

Portanto, os San Fermin são uma banda em que o mentor, Ellis Ludwig-Leone, nem sequer canta, o que faz deles caso bastante particular. Mas quem é, afinal, este Ludwig-Leone? Trata-se de um menino-prodígio que foi abençoado pelos melhores mestres — entre outros, foi aluno de Nico Muhly, o arranjador de Björk. “Trabalhar com ele foi extraordinário”, diz Ellis, “porque é tão versátil. Num dia está a trabalhar num arranjo para uma canção pop, no dia seguinte está a trabalhar numa ópera, depois num filme ou num ballet. Quando se trabalha em tantos projectos diferentes desenvolvem-se muitas capacidades e aprende-se a colaborar com outras pessoas, o que é muito importante quando se é o líder de uma banda.”

Ellis começou a dedicar-se à música quando tinha oito anos. “Os meus pais levaram-me a um treino de captação de basquetebol e havia lá um piano. Comecei a brincar com ele e desconfio que me devo ter safado porque de imediato eles inscreveram-me em aulas de piano.” Pensem então nele como um Julio Iglésias com talento (até porque a sua música pode ser considerada romântica, e o amor está no centro de várias canções): perdeu-se um basquetebolista e, “na universidade”, quando começou “a pensar numa carreira na música”, ganhou-se um compositor. No último ano do liceu já liderava um ensemble clássico, com “cerca de 15 músicos: havia cordas, metais e sopros, era quase como uma orquestra de câmara”. “Há muito que estou habituado a arranjos luxuosos”, conclui. Ao mesmo tempo, mantinha bandas rock com Allen (o cantor, para os mais distraídos). “Um dia apercebi-me de que podia juntar os dois universos.”

Podemos pensar em Ellis como um alquimista que concebeu uma obra nunca vista, mas, apesar de escassos, há predecessores para objectos como San Fermin, e Ellis está consciente deles. Três servem-lhe até hoje de inspiração: Come on Feel the Illinoise!, de Sufjan Stevens, All Is Well, de Sam Amidon, e o clássico Graceland, de Paul Simon.

Montanha-russa

Não vale a pena esperar que no futuro Ellis venha a fazer canções muito convencionais: não se considera um cantor/compositor e “nem sequer [escreve] num só instrumento”. Ao contrário do que o bom-senso aconselharia, escreve “todas as partes ao mesmo tempo”, o que provoca a tal sensação de descentramento de que falávamos: “Qualquer instrumento pode tornar-se o centro da canção a qualquer momento e de súbito ceder o lugar a outro.” Ao vivo, os San Fermin tentam sublinhar esta característica, “colocando as luzes sobre quem está a conduzir naquele momento a canção, e fazendo-o dar um passo em frente”. 

“Maximalista” por natureza, Ellis não aprecia ritmos simples: as suas canções parecem nunca ficar quietas e nunca sabemos quando um instrumento vai arrancar ou quando todos amainarão em simultâneo. É um pouco como andar na montanha-russa de olhos fechados ou ir pescar bacalhau no mar alto com uma canoa de borracha. “Tentei criar uma espécie de inquietude vadia que atravessasse todo o disco. Sempre que és embalado até ao sono, atiro qualquer coisa para te acordar. Há muitas mudanças métricas, batidas que falham no final de uma frase melódica — o que cria a sensação de que os cantores se impacientam com a própria canção.”

Toda esta conversa técnica pode dar a ideia de que San Fermin é um disco frio e cerebral, mas não: é o conhecimento técnico que lhe permite manipular-nos, e isso faz deste um disco extraordinariamente emocional. Disco que, note-se, não é apenas conceptual musicalmente mas também liricamente: “Há letras que se repetem ao longo do disco. I can’t fall asleep in your arms é o refrão tanto de Casanova como de The Count. E a palavra awful é muito usada”, explica, admitindo que se trata de um álbum sobre amor e solidão.

E depois de um disco assim, com que é que sonha Ellis? Triplas orquestras a penderem do tecto? Uma digressão com 150 músicos traumatizados na infância por pais abusadores? Não, não, não: “Sonho com dormir. E com um bom banho.” É que Ellis está “em digressão”. Bonito era se passasse por cá. Estamos a precisar de um pouco de grandeza neste país.

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