Canções da beleza, canções do horror

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Taylor Kirk culpe compositores como Bernard Herrmann ou filmes como Rosemary’s Baby por esta forma de encadear arranjos de cordas e sons de sintetizadores como se cada canção pudesse ser verdadeira-mente ameaçadora para o ouvinte

"Hot Dreams" vagueia entre uma luminosidade soul e uma música infernal. Taylor Kirk, autor do projecto Timber Timbre, deve a sua vida artística à fundamental antologia folk de Harry Smith e empenha-se em provar que merece um lugar entre essa gente estranha e encantadora

Num artigo publicado pela The Wire em 2003, David Keenan socorria-se da expressão New Weird America para cunhar aquele grupo de músicos que actuava no Brattleboro Free Folk Festival, com os ouvidos a funcionar num stereo em que num canal corria a música folk sorvida de colectâneas com alcance etnomusicológico e num outro se ouvia a aplicação prática e vagamente desleixada do psicadelismo. Houve quem preferisse chamar-lhes free folk (como o próprio festival sugeria) ou a corruptela freak folk (reforçando a deriva psicadélica). Pela cabeça de Keenan, no entanto, passava antes uma ligação a esse monumento de garimpa assinado por Greil Marcus, Invisible Empire, livro em que o autor acampou nas Basement Tapes de Bob Dylan com The Band e desatou a desenterrar camadas e camadas de fontes até chegar ao extracto onde se encontrava a Anthology of American Folk Music, compilada por Harry Smith (a partir de gravações registadas entre 1929 e 1932, que colecionou obsessivamente durante a II Guerra) e publicada pela Smithsonian Folkways em 1952. Evidenciando a matéria estranha e algo retorcida deste material, Marcus chamar-lhe-ia Old Weird America. Dylan alegadamente reconheceu que “não teria existido se não fosse Harry Smith”.

Taylor Kirk poderia facilmente partilhar essa citação – muito embora a sua música não esteja estacionada na proximidade de gente como Devendra Banhart, Joanna Newsom ou Vetiver (os mais populares membros da tal New Weird America). “Quando decidi gravar o primeiro conjunto de canções como Timber Timbre, chamado Cedar Shakes, tinha descoberto a Anthology do Harry Smith na Smithsonian e foi isso que me fez interessar pela música folk, algo que nunca me tinha despertado curiosidade”, confessa. Cedar Shakes resultaria, precisamente, do choque frontal entre esse facto e uma profunda crise pessoal. Sem a crise, na verdade, o músico canadiano muito provavelmente não teria um vazio tão grande que a Anthology pudesse ocupar alarvemente, numa colonização quase total e despótica.

À boleia desse cancioneiro (blues, folk, gospel, jub, country, hillbilly, bluegrass, etc.) cuja estranheza radicava numa profusão de temas sobre estrangulamentos, traições, envenenamentos, todos os pecados capitais e mais alguns, Taylor Kirk agarrou-se igualmente à Bíblia para ajudar a construir um reportório, intrigado que ficara com “a religião e o cristianismo”. “Por isso, quando compus essas canções estava a mimetizar, a tentar replicar o som e o ambiente dessas antigas gravações que tinham sido desenterradas. E referenciei esse tipo de símbolos, pesados, não necessariamente da forma mais honesta. Sim, porque não tenho sido um grande cristão e nem segui esse caminho em busca de qualquer conforto espiritual”. Aquelas canções, como um todo, de uma folk assombrada, cheia de fantasmas e de histórias de vida tétricas, violentas tanto emocional como fisicamente, constituíram uma epifania aguda na desorientada existência do músico canadiano.

O desencanto e o perfil trágico de algumas das composições forneciam não apenas elementos de sedução mas igualmente de identificação que Taylor Kirk tentava ver sublimados nas suas criações. Em comum com Dick Justice, Buell Kazee ou Sister Mary Nelson (ou os menos enigmáticos Carter Family e Mississippi John Hurt), compilados por Smith, Kirk considera que teria a total ausência de expectativa de que a sua música alguma vez fosse gravada ou sequer ouvida por terceiros. “Não tinha qualquer ambição além de lhe atirar terra para cima, para enterrar esse momento”, comenta. Num certo sentido, admite, as canções que apareceram mais tarde em Cedar Shakes (2006) funcionavam como um cortejo fúnebre para aquele seu período negro, um luto no qual depositava desesperadamente a esperança de catarse, empilhando composições até conseguir tapar o fundo.

“Foi por volta dessa altura”, recorda Kirk, “ que comecei a tocar ao vivo, sozinho, perante pequenas plateias, em sítios fechados”. Mas o propósito regenerador na origem das canções rapidamente levou o músico a convencer-se de que o destino daqueles temas era dar-lhe ferramentas para se reerguer e, portanto, não demorou a preparar-se para abandonar os palcos: “Achei que devia parar de colocar energia nesse processo e dedicar-me à aprendizagem de um ofício”. Foi então, em 2009, que a editora Arts & Crafts o contactou, querendo investir na sua música. A pesada derrota pessoal que se esforçara por enterrar parecia, enfim, germinar numa conquista pessoal e artística.

Prog-soul?

Avancemos para 2014. Hot Dreams, o quinto álbum de Kirk como Timber Timbre (mas apenas o terceiro na Arts & Crafts e, portanto, com exposição para lá do seu quintal) mantém características da galeria de excentricidades folk de Harry Smith que os seus seguidores optaram muitas vezes por limar e polir: um delicado equilíbrio entre a beleza e o horror, em que se ouvem pulsões que deveriam estar escondidas. Não espanta que Taylor Kirk culpe compositores como Bernard Herrmann ou filmes como Rosemary’s Baby por esta forma de encadear arranjos de cordas e sons de sintetizadores como se cada canção pudesse ser verdadeiramente ameaçadora para o ouvinte. Na verdade, esse era até um lado que pretendia domar em relação ao anterior Creep on Creepin’ on – “queria tentar deixar para trás palavras como assustador ou terrífico”. Só que não é assim tão fácil a um homem que em tempos disse querer alcançar uma evil music livrar-se dessa natureza que frequentemente o empurra para colega de carteira de Nick Cave ou, em dias extremos, Scott Walker. Passe-se por Curtains!?, Ressurection Drive Part II ou The Three Sisters só para ter a certeza.

“É verdade que gravito muito naturalmente na direcção desses sons mais esquivos”, admite, sabendo que nunca se afastará muito deste magnetismo horrorífico. “Gosto muito de ouvir as coisas um pouco esfrangalhadas e distorcidas”. Aquilo que resulta inebriante na música de Taylor Kirk é que este seu lado, reforçado por uma fixação na literatura de William Faulkner, Flannery O’Connor e outros exemplos de southern gothic, é a forma como coabita com génio com um fulgor doo-wop (sobretudo em Creep On…) ou soul (mais agora em Hot Dreams). No sumptuoso tema título, por exemplo, é quase impossível não ouvir o saxofone lânguido a sonhar com essoutro com que Elis Fontaine surgia en What’s Going on, de Mavin Gaye. Sendo admirador confesso de Sam Cooker e Otis Redding, parece piada ou provocação que uma canção como Hot Dreams possa existir num álbum que Taylor Kirk pensou como “uma espécie de disco prog”. “Acho que sinto isso por causa dos sintetizadores e pelo tipo de instrumentação”, desculpa-se. Kirk e os seus músicos tiveram acesso a todo o material de um museu de teclados, pejado de pianos e cravos do século XIX – que começaram a invadir com parcimónia q.b. as canções. Mas mesmo assim custa a crer que nos diga: “Lembra-me coisas como os King Crimson”. Nessa altura, parece impossível estarmos a falar do mesmo disco.

Talvez porque à excepção do tal lastro trazido da colectânea de Harry Smith, Taylor Kirk vai montando as canções em torno de ideias que falham os seus intentos iniciais. Ou, pelo menos, afastam-se o suficiente para que provoquem reconhecimentos muito longe dos seus. Em Curtains !? garante ter tentado aproximar-se do universo da banda alemã de kraut rock Can. Foi tão bem-sucedido que o seu técnico de som comentou que lhe soava à banda sonora de Lalo Schiffrin para Dirty Harry. A canção, esclareça-se, é mais um deslumbrante exemplo do belo perfurado pelo horror. “Às vezes falam-me de bandas excelentes como os Cramps, os Gun Club ou Talk Talk. Gente que nem conhecia bem e jamais me teria ocorrido, mas agora que os fui ouvir concordo que se consegue traçar uma linha directa.”

Essa linha acaba sempre por ter como estação terminal a música de raiz norte-americana. Quer esteja a citar ambientes lidos na obra de Faulkner ou a evocar o pintor Andrew Wyatt – “o correspondente visual ao Faulkner”, defende –, ou até mesmo a reconhecer referências embaraçosas, “esperançado que mais ninguém repare”. Embaraçosas? “Sim, o meu afecto pelo grunge dos anos 90 ou qualquer música má ou que o tempo não tratou bem”. Não, ninguém repara. Seja como for: música norte-americana – por muito que os EUA não lhe façam a vida fácil. “Acho que não devem estar muito interessados na nossa ideia de música americana”, desabafa. É uma América estranha.

 

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Timber Timbre
Hot Dreams
Arts & Crafts; distri. Pias Iberia

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