"Temos imensas oportunidades para abrir as portas e as janelas da música clássica"

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Acompanhado pela Amsterdam Sinfonietta, interpreta um conjunto de canções de Brahms, Barber, Wolf e Schubert Dario Acosta

De regresso a Portugal para mais um concerto na temporada Gulbenkian, Thomas Hampson partilhou com o Ípsilon a sua incansável paixão por levar a cultura musical ao maior número de pessoas recorrendo às ferramentas que mundo actual oferece

Ao barítono Thomas Hampson não basta ter uma carreira extraordinária na ópera e na canção de câmara, um repertório vastíssimo frequentemente caracterizado como “enciclopédico” e um número impressionante de prémios e distinções. É também um homem do nosso tempo, atento ao lugar da música na sociedade e na educação, às novas tecnologias e à difusão da cultura através de meios como a internet, programas radiofónicos, materiais pedagógicos e projectos multimédia comoVoices from the Heart ou I Hear America Singing, uma antologia sobre o contexto cultural da canção americana. Fascinado pelo universo da canção, criou em 2003 a Hamspong Foundation, uma plataforma que visa promover a comunicação e o conhecimento de diferentes culturas através da poesia e da música. A sua inteligência, versatilidade e elevada estatura artística como intérprete poderão ser apreciadas mais uma vez em Lisboa no domingo (às 19h, no Centro Cultural de Belém) no âmbito da temporada Gulbenkian. Acompanhado pela Amsterdam Sinfonietta, dirigida pela violinista Candida Thompson, interpreta um conjunto de canções de Brahms, Barber, Wolf e Schubert.

O programa do seu concerto em Lisboa inclui versões orquestrais de Lieder originalmente escritos para piano. Essa opção não retira algo do carácter intimista original desse repertório?

As canções com orquestrações constituem um género específico, os próprios compositores orquestravam habitualmente as suas canções, incluindo Schubert e Brahms. Tem apenas de haver cuidado com as peças que se escolhem. Neste caso, não se trata de uma grande orquestra, a Amsterdam Sinfonietta é um ensemble de cordas, o que contribui para uma textura particular na qual as cores tímbricas e as tessituras dos instrumentos funcionam como metáforas do que Brahms ou Schubert queriam transmitir. Gosto muito destas orquestrações pois valorizam o significado dos textos e preservam o carácter da música, ao contrário de outros exemplos que soam como sinfonias de Brahms. A única coisa que me interessa é se a canção tem um carácter ou se conta uma história. As versões que escolhemos para este programa são muito bonitas e fazem exatamente isso, não há nada de menos intimista. Se fosse à Gulbenkian fazer um recital com piano com as mesmas peças, a mensagem seria exctamente a mesma. 

A inclusão de Samuel Barber vem ao encontro da sua paixão pela canção americana ou tem outra motivação?

A peça de Barber, Dover Beach, foi escrita originalmente para barítono e quarteto de cordas pelo que resulta bem na versão para orquestra de câmara da Amsterdam Sinfonietta. O texto de Matthew Arnold que lhe serve de base é sobre a crise da fé e a procura do amor pelo que funciona como um paralelo às canções de Brahms [Vier Ernste Gesäng op. 121], baseadas em textos bíblicos. A escolha não tem na ver com a minha paixão pela canção americana. Barber é um dos nossos mais interessantes compositores internacionais e estou muito contente por levar a sua extraordinária música a um público vasto através desta digressão.

O que distingue a tradição americana da canção no âmbito da música erudita? 

Tanto para a canção como para outras formas de arte parece-me mais útil olhar para a cronologia da América enquanto nação do que fazer a comparação de questões estilísticas com outros países e culturas. O que a distingue é o seu ponto de partida. Se olharmos para a cultura americana, em cada 10 ou 20 anos encontramos uma quantidade imensa de material criativo: poesia, contos, novelas... A cultura americana é por definição um mosaico muito complexo de culturas, mas a sua essência e as suas bases podem extrair-se da compreensão da sua poesia e da sua música. São também estas as motivações do meu fascínio pela canção em geral, em todas as línguas. 

Canta numa enorme quantidade de línguas. Conhece repertório português?

Canto em 14 línguas diferentes! Para um estrangeiro não faz sentido cantar o grande género da canção portuguesa, o fado. Ser apaixonado por canções em todas as línguas não quer dizer que tenha o direito a cantá-las todas. Mas gostaria de encorajar os artistas portugueses e a comunidade internacional a explorar canções de compositores clássicos portugueses. No seu artigo pode encorajar os meus colegas cantores a enviarem-me repertório português e eu poderei coloca-lo no site da Hampsong Foundation [http://www.hampsong.org/ ], um lugar especial para a divulgação de canções de várias culturas em diferentes línguas.

Quais são actualmente os principais projectos da Hampsong Foundation?

Neste momento são os que decorrem em colaboração com uma importante estação de rádio em Chicago (Wfmt), que é um dos maiores produtores de conteúdos na área da música clássica. Fizemos o projecto Song of America, que está disponível on-line, e estamos a desenvolver um outro, Song, mirror of the world, sobre a canção como identidade cultural através da história. Terá séries semanais durante quatro anos e será transmitido internacionalmente. No quarto ano pretendo incluir culturas menos conhecidas no campo da música erudita, será uma boa altura para dar também atenção a Portugal. Estes programas de rádio envolvem muita investigação e deverão tornar-se uma base de materiais que os professores possam vir a usar nas escolas. A música ajudará a conhecer melhor matérias como a história, a economia ou a política.

A relação texto-música é a base da canção, mas é frequente encontrar música de alto nível sobre textos menores. Como vê esta questão?

Não simpatizo com esse argumento. Se pegarmos no melhor de um compositor e no melhor de um poeta não quer dizer que a soma dê a melhor da canção do mundo. A canção é uma arte por si própria. O conteúdo de um poema e o impacto emocional e intelectual que inspira o compositor a fazer uma canção é um processo muito diferente da música incidental que por vezes acompanha a grande poesia. O importante é se o poema desencadeia no ouvinte a emoção e a experiência que o poeta e o compositor articularam. Não me interessa se alguém diz: este poeta é menor, só é lembrado na história porque Schubert o colocou em música. Trata-se de algo irrelevante no momento da interpretação. Jamais penso: esta canção seria melhor se o poema fosse uma das obras-primas da literatura mundial.

O seu repertório inclui numerosos papéis operáticos. Como prepara cada nova personagem? 

Devagar e cuidadosamente! Estudo tudo o que posso, não só a obra e o compositor. Gosto de ouvir gravações e ver vídeos. Não penso que ouvir e ver o trabalho de outras pessoas seja um influência negativa. Mas claro que depois o processo de construção da personagem é meu.

Como resolve o problema quando a visão de uma ópera pelo encenador é diferente da sua?

É preciso sermos cuidadosos nas escolhas. Para assumir um compromisso tenho de ter a certeza de que posso dar 150 por cento! É normal que não goste de algumas opções de encenação, mas durante o processo de trabalho há colaboração e discussão. A ópera é por definição um trabalho de conjunto. É também uma forma de arte musical e pelo que a essência da música que nos é dada por compositores geniais tem de ser respeitada, acho que não temos direito a contar uma história diferente. 

Nos últimos anos tem-se falado muito na crise de ópera e da música clássica e nos seus públicos minoritários. Qual é a sua perspectiva em relação a estas questões?

Contrariando alguns clichés, devo dizer que o mundo da ópera tem uma atmosfera muito viva e diversificada. As pessoas vão hoje muito mais à ópera do que alguma vez foram na história do mundo. Isso são boas notícias! A crise não é da música clássica nem da ópera, a crise tem a ver com os sistemas educativos das nações ocidentais. Sucede que se desinvestiu e decidiu não apostar de forma séria na arte no domínio da educação. As artes e as humanidades são vistas como espécie e nível mais alto da indústria de entretenimento e isso retira às pessoas a essência das suas próprias histórias, o sentido de onde vêm e a sua própria cultura. 

A crise será mais da indústria discográfica, por exemplo...

Não estou convencido de que essa coisa chamada crise da música clássica exista. O que há é uma tremenda pressão em torno dos modelos comerciais, mas esse é um problema geral da indústria do espectáculo, das vendas de CDs de todos os géneros, da rádio... É uma crise dos modelos empresariais e não de qualidade da música clássica. Na verdade há mais pessoas a ir a concertos e há mais concertos do que nunca. Não podemos ficar agarrados a argumentos que são clichés como o de que só as pessoas ricas vão à ópera. Uma das razões do problema da indústria tem a ver com a recusa em reconhecer que há um futuro que é diferente da actualidade. Em vez de olharem para o futuro, as editoras começaram a fechar e a diminuir na dimensão na sequência da revolução digital, tomaram as decisões erradas. Agora as que têm mais recursos estão a tentar voltar ao mundo real. 

No seu caso tem tirado partido das novas tecnologias como meio de divulgação da cultura musical...

Temos de usar todas as ferramentas à nossa disposição e contamos hoje com meios fantásticos para pôr ao serviço da educação. Se queremos levar a música clássica às pessoas temos de a tornar disponível e integrá-la nas suas vidas. Só porque gostamos de Shakespeare não quer dizer que detestemos Harold Pinter ou que não gostemos de ver uma série como Downton Abbey. Vivemos numa sociedade mais eclética do que antes e temos de permitir às pessoas apreciar várias formas de arte e cultura em vez de ditar regras ou de promover compartimentos fechados. Temos imensas oportunidades para abrir as portas e as janelas da música clássica, fazer com que as pessoas experimentem esse mundo e convidá-las a compreender por que razão a estrutura tão detalhada e por vezes complexa deste tipo de música é o seu ponto mais inspirador e fascinante e também o cerne do seu impacto emocional. A chave é educação, educação, educação! Não me refiro a dogma, mas à oportunidade, à fantasia, ao incentivo à curiosidade.

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