A educação de Kaja

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Na sua espantosa estreia a solo pela Clean Feed, a jovem pianista eslovena Kaja Draksler toca a sua recusa em contornar obstáculos. Prefere esbarrar neles e só avançar depois de os vencer pelo entendimento

Assim como entrar numa sala afogada na penumbra, não fazer ideia do sítio dos interruptores, não saber o que se encontra debaixo dos pés e à distância das mãos, perder a noção espacial. E não desesperar, ansiar apenas pela habituação dos olhos e pela lenta reorientação. A curta vida artística da pianista eslovena Kaja Draksler tem avançado através de momentos de vazio referencial como este, em que o seu entendimento da música é esfrangalhado, as certezas voltam à fase de dúvidas insolúveis e aquilo que fica é uma reacção intrigada perante sons aos quais não consegue atribuir sentido. Por isso, o que cria resulta em grande parte da construção de ferramentas de descodificação desse pântano inicial.

Num primeiro momento, foi isso que aconteceu quando um professor lhe passou um disco de Thelonious Monk. Já nem se lembra qual, uma qualquer cópia num CD queimado para espalhar a doutrina do mestre. Kaja tinha chegado há pouco tempo a um liceu com um departamento de Pop & Jazz, e o jazz, na verdade, tinha acidentalmente vindo a reboque da pop, que vinha desenvolvendo desde a sua infância numa pequena vila eslovena, terra para não mais de 500 habitantes, e que lhe ampliava as probabilidades de ser aceite como aluna. Mesmo tendo, aos 13 anos, dirigido durante uns meses o grupo coral da terra, quando pensou em prosseguir os estudos superiores na Holanda as suas intenções estavam fixadas num curso de Latim e Grego Clássico.

O jazz conquistou-a aos poucos. “É difícil ouvir jazz na Eslovénia, só passa nalguns programas de rádio muito tardios e eu tinha uma ideia muito vaga do que seria”, recorda. Foi uma noção construída por camadas: antes de mais, graças a alguns discos avulsos passados pelos colegas mais experimentados. Com insistência, do seu mundo de guitarra, baixo, bateria e voz, verso e refrão, fórmula redonda de três minutos, foi sobrando apenas uma sensação de monotonia. “O som do jazz, pelo contrário, intrigava-me muito, e sei que demorei algum tempo a entrar.” A introdução ficou a cargo de Chick Corea, mas a revolução na sua vida chegou, finalmente, com Monk. “Abriu-se um novo mundo, porque a estética era tão diferente e tão específica. Sentia-me muito atraída pelo disco, mas não compreendia verdadeiramente como devia ouvi-lo. Só que estava sempre a voltar lá e o Monk abanava a minha compreensão do que era o jazz.”

O tapete fugir-lhe-ia novamente debaixo dos pés anos mais tarde, quando a meio da sua licenciatura em Groningen passou seis meses em Nova Iorque, aproveitando para estudar com Vijay Iyer. O primeiro contacto com Iyer, ainda enquanto ouvinte, seria semelhante ao abalo provocado por Monk. E Draksler começou a perceber que sempre que bailava nos seus ouvidos a pergunta “O que é isto?”, a turbulência que a ocupava em seguida era a de uma curiosidade faminta. Quando ouviu pela primeira vez Blood Sutra, de Iyer, sentiu-se novamente sem prateleira onde arrumar aquela música. Pôs-se a transcrever as peças, em busca de uma porta de entrada, e acabou por escrever um e-mail para o pouco fiável endereço disponível no site do músico. “Não estava à espera que me respondesse”, confessa. “Só que no dia seguinte já tinha uma longa resposta a todas as minhas questões e ele explicava-me ainda o seu método de trabalho. A partir daí ficámos em contacto.”

Da tese ao disco

Em rigor, Vijay Iyer, homem que roça o consenso no jazz de hoje, tornou-se o mentor de Kaja Draksler. Foi guiando o estilo das suas composições, estabelecendo comparações que colocavam os temas da eslovena em perspectiva — de Messiaen a experimentadores no jazz —, obrigando-a a estudar cada vez mais música de distintas origens. “A tutoria intensa do Vijay levou-me a estudar muita música, também pelas conversas com ele. Para conversar com qualquer grande músico temos de ter um conhecimento sólido, caso contrário pode ser completamente inútil. Isso também me inspirou muito a ler os ensaios de Anthony Braxton ou Steve Coleman”, acrescenta.

Pelo meio, Vijay Iyer poria Draksler mais uma vez para fora de pé, ao largá-la desamparada no mar de notas conflituantes do alienígena Cecil Taylor. Mais uma vez, a necessidade de encaixe da descoberta no seu esqueleto acabaria por fazer de Taylor o tema da tese de pós-graduação da pianista em composição “clássica” (e de Iyer o respectivo orientador), depois de afunilar o seu objecto de estudo a partir da ideia inaugural de “investigar a zona entre a música improvisada e a música escrita”. “Quando comecei a estudar a música do Cecil Taylor, já havia tanta coisa lá dentro que acabei por estreitar apenas para uma peça a fim de poder ser exaustiva.” Aquilo que movia a eslovena era uma tentativa de “compreender como uma música pode ser tão lógica e ao mesmo tempo tão abstracta”.

Em parte, essa investigação acabou por transbordar para o seu primeiro álbum a solo, The Lives of Many Others, lançado pela editora portuguesa Clean Feed e destacado pelo New York Times numa entusiástica crítica — “Fiquei chocada, ia tendo um ataque cardíaco”, graceja. Cecil Taylor não assombraria todo o álbum, até porque a sua influência só faria sentir-se a meio do processo de composição. Kaja cita antes um ensinamento de Craig Taborn como determinante para uma gravação que a aterrorizou por alturas da proposta, tendo respondido ao programador do Ljubljana Jazz Festival que piano solo é coisa “para gente velha e madura”. Não para os seus curtos 26 anos. Mas não é essa idade que se escuta num disco esquivo, misterioso, que avança por trilhos improvisados até repousar em partes escritas. Primeiro tomo de um percurso promissor — que deverá ter novo acrescento este ano, em duo com a trompetista portuguesa Susana Santos Silva —, adivinha-se nesta música alguém que quer estudar, estudar, estudar até não sobrar mais do que o instinto.

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