Luísa Todi: A cantora de todos os séculos

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Luísa Todi (1753-1833) foi a mais célebre cantora portuguesa da história da música

De Lisboa a São Petersburgo, passando por Paris, Berlim ou Veneza, Luísa Todi deslumbrou o público do século XVIII. Os Músicos do Tejo revelam agora o repertório da mais famosa cantora de ópera portuguesa num CD e num concerto em Almada

Luísa Todi (1753-1833) foi a mais célebre cantora portuguesa da história da música e a protagonista de uma carreira internacional impressionante que a levou a actuar nos principais palcos da Europa e a ser disputada pelas cortes francesa, prussiana, russa e espanhola. Enquanto os "castrati" dominavam os teatros públicos e privados da Lisboa setecentista, Luísa Rosa de Aguiar Todi (que herdou o apelido italiano por via do casamento com o violinista napolitano Francesco Saverio Todi, membro da orquestra do Teatro do Bairro Alto) tentou a sua sorte nos grandes centros europeus. Conheceu a fama em Paris, Veneza ou São Petersburgo, rivalizou com outras estrelas do canto (como o "castrato" Luigi Marchesi) e inspirou poemas inflamados. A sua temporada italiana de 1790-91 ficaria conhecida como "o ano da Todi" e o teórico Antoine Reicha chegou a classificá-la como "a cantora de todos os séculos" no seu "Traité de Mélodie".

A figura de Luísa Todi tem sido objecto de várias pesquisas, destacando-se o contributo de Mário Moreau, mas poucas pessoas conhecem o repertório que cantava. "Era urgente tornar acessível ao público as belíssimas árias cheias de dramatismo e virtuosismo que tornaram Luísa Todi famosa", explica ao Ípsilon Marcos Magalhães, cravista e director musical do agrupamento Os Músicos do Tejo. "Quando se comemoraram os 250 anos do seu nascimento ficava admirado por assistir a homenagens cujos programas eram constituídos por árias de Verdi e Puccini, compositores bem mais tardios! Por isso a ideia da edição de um CD em torno do repertório da Todi passava também por dar a conhecer um período interessantíssimo da história da música ainda pouco divulgado: a ópera antes de Mozart", continua. O projecto nasceu há quatro anos em colaboração com a cravista Marta Araújo, mas só foi possível realizar a gravação em 2008 e editar o disco em 2010, graças ao patrocínio da empresa AMARSUL. O resultado foi apreciado ao vivo no sábado (Teatro Municipal de Almada) e pode ser escutado no CD "As Árias de Luísa Todi".

A "artista mais perfeita"

O primeiro passo foi procurar as óperas mencionadas nos minuciosos estudos de Mário Moureau. "Quase todas as partituras se encontram na Biblioteca da Ajuda, onde se guarda uma das maiores colecções de ópera setecentista; a escolha era difícil mas a leitura dos relatos da época ajudou", conta o cravista. "Escolhemos árias de grande exigência musical, que requerem recursos vocais excepcionais, e também árias que a Todi gostava de usar em recital ou como números extra-programa e que certamente valorizavam as suas qualidades."

A selecção inclui obras de Bernadino Ottani, Niccolò Piccinni, Giovanni Paisiello, Antonio Sacchini e David Perez (compositor ao serviço da corte portuguesa entre 1752 e 1778, com quem Todi terá estudado) e, segundo Marcos Magalhães, revela uma cantora com um perfil vocal que corresponde ao que hoje chamaríamos um soprano dramático de coloratura: "A voz tinha um âmbito muito grande, possuia grande agilidade e os sons graves e médios deviam ter um certo dramatismo. Hoje em dia esse tipo de voz é rara."

Outro aspecto importante que sobressai dos testemunhos históricos é "o sentido dramático e os dotes de actriz" de Luísa Todi, uma atitude bastante moderna para a época. "Nas óperas do século XVIII, alguns dos papéis mais simples, geralmente cómicos, podiam ser feitos por actores com formação musical. Depois havia os cantores, designados 'músicos', que faziam os papéis principais e eram uma espécie de altletas de alta competição com conhecimentos musicais por vezes equiparados aos dos compositores, de tal modo que eram capazes de improvisar. Parece-me que Luísa Todi reunia esses dois mundo, pois ela começou no teatro, estreou-se muito jovem no 'Tartufo' de Molière, mas também dominava as técnicas musicais. Devia ter muito talento para representar, não queria apenas ser um instrumento que reproduz uma partitura", esclarece o director dos Músicos do Tejo.

Marcos Magalhães e Marta Araújo quiseram atribuir o programa a uma cantora portuguesa, acabando por escolher a soprano Joana Seara, actualmente a residir em Londres e a iniciar uma carreira internacional.
"Concretizar este projecto foi um passo muito importante, pois um CD com uma orquestra de instrumentos de época continua a ser pouco frequente em Portugal", diz Marcos Magalhães. "Os Músicos do Tejo estão muito empenhados na descoberta e na dignificação do património histórico português, uma área que tem ainda muito para explorar." Recentemente, apresentaram em Paris um concerto baseado num anterior trabalho discográfico ("As Sementes do Fado") e em Maio vão repor no Teatro Municipal de Almada a ópera "La Spinalba", de Francisco António de Almeida. Mas a meta mais imediata é dar a conhecer o perfil musical da "artista mais perfeita", designação usada por um cronista do século XVIII a propósito das numerosas apresentações de Luísa Todi no "Concert Spirituel" de Paris.

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