Os destruidores da civilização estão entre nós

Foto
Genesis P-Orridge (à direita) abandonou o grupo mas não há nada a temer: Fanni Tutti; Peter Christopherson e Chris Carter actuam hoje no Porto sob a designação X-TG

Nos anos 1970, levaram a arte e a música a níveis de violência extremos. Inventaram um género, a música industrial, mas permanecem únicos. Senhoras e senhores, os Throbbing Gristle estão hoje no Porto - com outro nome

"Acho que posso afirmar que, como acontece sempre com os Throbbing Gristle, devem esperar o inesperado". O aviso, destinado a quem for hoje à Casa da Música, é de Cosey Fanni Tutti, membro da banda que inventou todo um novo género (mesmo que eles não se revejam, e com razão, em 99 por cento do que veio depois): a música industrial. Tutti tinha tanta razão que, dias depois da entrevista ao Ípsilon, os Throbbing Gristle anunciaram que deixaram de existir, "pelo menos enquanto entidade de palco", devido à saída de Genesis P-Orridge.

Não há nada a temer: Fanni Tutti, Peter Christopherson e Chris Carter actuam hoje no Porto, já não enquanto Throbbing Gristle, mas sob a designação X-TG. O nome pode não ser o mesmo, mas não muda a substância do evento: o "manager" do grupo garantiu ao Ípsilon que o concerto será semelhante ao que os Gristle deram em Londres, no final de Outubro, com a excepção de duas canções, em que Tutti substituirá P-Orridge na voz.

Antimúsica

Esta é a banda que um político conservador britânico classificou de "destruidores da civilização", quando, ainda enquanto COUM Transmissions (o grupo de música e arte que se transformaria nos Throbbing Gristle, em 1975), montou a exposição "Prostitution" com tampões usados, seringas e imagens da carreira de Fanni Tutti enquanto modelo porno. As performances COUM envolviam frequentemente sexo ao vivo ou actos bizarros como tentativas de masturbação com cabeças de galinha em cima do pénis.

Esta é a banda que, enquanto a nação inglesa andava entretida com a glorificação dos três acordes do punk, preferiu inventar uma outra forma de música, feita de "loops" de cassetes, ruído saído de violinos partidos, baixos e guitarras baratas em doses industriais, vozes entre o sonambulismo e a violência militarista, tudo filtrado por um batalhão de efeitos, e letras inspiradas pelo lado mais bizarro e feio da humanidade. Uma música belíssima, ainda hoje inclassificável.

Eram, ao mesmo tempo, música pré ou anti-rock'n'roll (porque à margem das convenções - P-Orridge definia-os frequentemente como "antimúsica") e uma enorme experiência rock (porque muito poucos tinham levado o rock a níveis tão extremos). Uma pandilha influenciada pelo primitivismo dos Fugs e dos Velvet Underground e, num plano não musical, pela Fluxus, pelos dadaístas e "accionistas" de Viena (Hermann Nitsch, etc.). A semente de um novo género, a música industrial, de fronteiras vagas, que vai da violência absurda dos Whitehouse à dança cerebral e fria dos Cabaret Voltaire.

O gosto pelo extremo continuou nos Throbbing Gristle, agente infiltrado dos artistas num outro meio, mais distante das galerias de arte, mais... pop - Orridge estava encantado com a fama tal como Warhol a entendia. Levaram com eles as mesmas fixações com a violência sobre todas as formas (dominação sexual, "serial killers", pedofilia, imagens e referências nazis).

Tácticas de choque? Não, responde Cosey Fanni Tutti, por e-mail: "Os Throbbing Gristle usaram esse material como fonte para vários projectos, mas de forma muito honesta e com fins humanitários. O lado feio da raça humana é tão importante como o belo. Entender o nosso uso dessas imagens como tácticas de choque é um equívoco e pode ser visto como uma falta de disponibilidade para enfrentar as realidades da nossa crueldade para os outros. Na altura, muito da II Guerra e outras atrocidades foram varridas para debaixo do tapete. É importante não negar a história e a crueldade inexplicável e aprender com ela. Aprender não é possível se a ignorarmos".

Psicadelia invertida

O jornalista inglês Simon Reynolds tem uma tese, que incluiu no livro essencial sobre o pós-punk "Rip It and Start Again": "a música industrial do final dos anos 70 foi o segundo desabrochar de uma 'psicadelia' autêntica". "A grande diferença (e o que torna o industrial uma 'psicadelia' 'autêntica' e não um mero revivalismo) é que o industrial substituiu beijar o céu por fitar um abismo cósmico. O industrial é a 'psicadelia' invertida: uma longa 'trip' deprimente", escreveu.

No "ethos" industrial, como os Gristle o concebiam, não cabia o domínio técnico. Trinta e cinco anos depois, ainda não sabem tocar nenhum instrumento (pelo menos segundo os livros). É uma questão vital para o grupo continuar a ser desafiante, reflecte Tutti. "Liberta-te das formas estabelecidas de pensar e construir música. Conheço músicos que aprenderam música convencionalmente para quem é impossível improvisar. Quando não têm uma partitura agarram-se a acordes que aprenderem e que estão metidos no seu subconsciente. Isso é incrivelmente restritivo do ponto de vista criativo. Gosto de responder a um som na sua forma essencial, não da forma como foi categorizado".

Esta atitude levou os Gristle a criar o seu equipamento, tornando-se pioneiros na utilização e manipulação de sons pré-gravados em palco. A cave do grupo em Londres tornou-se um laboratório, no qual experimentavam com diferentes frequências sonoras, sempre com o volume a níveis brutais. "Não existia equipamento que produzisse os sons que ouvíamos nas nossas cabeças. Acontece o mesmo hoje. Temos equipamento que não está disponível comercialmente e usamos computadores e programas informáticos de formas que não é suposto fazer. Acontece o mesmo com qualquer equipamento, é a forma como usas que importa", refere.

O exemplo dos Throbbing Gristle inspirou artistas a fazerem música industrial. Contudo, o resultado era e é, na maior parte dos casos, pouco desafiante, uma mera forma de rock com a qual os Gristle não se identificam. "O tipo de música que as pessoas entendem como 'industrial' não tem nada a ver com a forma como nós vemos a música industrial. Para nós, industrial não são sons maquinais duros metidos numa construção básica de rock'n'roll martelada numa audiência. Temos uma subtileza na nossa abordagem ao som que tem mais a ver com a construção de música clássica do que com o rock'n'roll", acrescenta.

Segunda vida

Em 1981, os Gristle anunciaram que a "missão estava acabada" e partiram para outros projectos, como os Psychic TV e os Coil. Em 2004, o longo silêncio foi interrompido, com "TG Now", uma edição limitada. Em 2007, lançaram "Part T wo" e no ano seguinte voltaram aos concertos. E eis os outrora "destruidores da civilização", com a aura de respeitabilidade que os anos costumam dar, a serem convidados para tocar em instituições como o Institute of Contemporary Arts, de Londres, que 34 anos antes os tinha banido devido ao escândalo "Prostitution" dos COUM Transmission.

"Os Throbbing Gristle e eu sempre nos infiltramos no 'establishment' de qualquer forma, estar envolvido com ele não é nada de novo. O que é novo é que eles agora aceitam a nossa contribuição para a cultura, mesmo que retrospectivamente. Foi sempre isso que aconteceu com trabalho desafiante. Não nos comprometemos, somos ainda os mesmos, as instituições é que mudaram, talvez haja novo sangue nas curadorias. Vemos tocar nesses sítios como uma oportunidade para disseminar as nossas ideias, como sempre fizemos. Não restringimos as nossas plataformas operacionais".

Os tempos duros da Inglaterra de Margaret Thatcher que os Gristle encontraram quando puseram a cabeça de fora encontram "semelhanças" com a austeridade prometida por David Cameron, diz Tutti. "De certa forma há semelhanças entre a situação política que temos hoje no Reino Unido, que é volátil como era nos anos 1970. Agora temos um governo conservador a meter a sua ideologia pela garganta abaixo da grande maioria que não votou neles", lamenta. "O lado positivo deste tipo de austeridade política e social é que historicamente está provado ser um ambiente fértil para a inovação artística em todas as formas".

Para Tutti, há ainda um "lado de lá", o lado dos "outsiders", como eles, "porque a natureza humana não se presta à homogeneidade". "Da forma que eu vejo, os Throbbing Gristle são ainda radicais, da mesma forma que éramos nos anos 1970. Ainda não nos conformamos com as definições habituais de 'música'", diz. "Penso que o termo ["radical"] é ainda válido e provavelmente muito apto considerando a situação mundial. Seria de esperar que o radicalismo pusesse a cabeça fora do parapeito e desse um bom abanão a alguns dos loucos que exercem o poder".

Seja como Throbbing Gristle, X-TG ou outro nome, podemos contar com eles para isso.

Sugerir correcção
Comentar