Bastonário diz que há médicos pressionados para não pedirem medicamento inovador para doentes com hepatite C

Haverá cerca de 100 doentes prioritários que esperam por fármaco já aprovado em oito países europeus.

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O bastonário da Ordem dos Médicos não teve respostas do ministério Enric Vives-Rubio

Eles adaptaram-se. Usam termos vindos da economia como “retorno”, “dias perdidos de trabalho”, notam que sairão mais caros se tiveram que receber transplante de fígado, referem os custos que acarretarão se acabarem os seus dias numa unidade de cuidados continuados, dependentes, diz a doente Isabel Santos. “Eu sei que é caro, mas é a única hipótese que tenho, contribuímos com os nossos impostos”, refere, por sua vez, Paulo Oliveira. Mas há quem também use outros argumentos: “Eu queria ver crescer a minha neta”, junta Isabel Santos. Vários doentes com hepatite C em estado grave, na casa dos 40 a 50 anos, dirigiram-se esta quinta-feira ao ministro da Saúde. A brasileira Karen Gaidão, a mais mediática (ex-mulher do futebolista Jardel) pediu ao ministro que pense neles “com carinho e com o coração”.

A associação de doentes SOS Hepatites Portugal organizou esta quinta-feira uma conferência de imprensa na qual deu a voz a doentes com hepatite C em estado avançado da doença que aguardam que lhes seja dado um medicamento que apresenta taxas de cura de 90% e que está aprovado na Europa desde Janeiro.

O medicamento está comparticipado em oito países europeus: Alemanha, Áustria, Dinamarca, Escócia, Eslovénia, Finlândia, Noruega e Suécia. Diversos países garantem neste momento o acesso aos doentes através “de programas de acesso precoce”, como a Espanha, França e Reino Unido, refere o laboratório Gilead em resposta ao PÚBLICO. O Ministério da Saúde está a negociar com o laboratório a comparticipação do Sofosbuvir, cuja administração custaria, aos preços propostos pelo laboratório, 48 mil euros por doente, por um tratamento de três meses.

A hepatite C é uma inflamação do fígado provocada por um vírus que, quando crónica, pode conduzir à cirrose, insuficiência hepática e cancro. Transmite-se, sobretudo, por via sanguínea.

Se o Ministério da Saúde quer fazer assim a contabilidade, o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), José Manuel Silva, acede. Na conferência de imprensa da SOS Hepatites, que decorreu na sede da ordem, disse que não falaria de “aumento da qualidade de vida dos doentes” e “no valor da vida das pessoas”, apenas “de custos”: “É mais barato tratar os doentes do que não os tratar”.

O bastonário da OM diz que só os doentes emergentes precisam do fármaco já e estes não serão mais de 100, o que significa um custo imediato de entre 5 a 10 milhões de euros. “Um país que desperdiçou tanto... Não se pode pôr em causa 100 vidas por 5 milhões”. Estima-se que haja em Portugal cerca de 120 mil pessoas com hepatite C.

Questionado recentemente sobre o tema, o ministro Paulo Macedo afirmou que é preciso que haja razoabilidade nos preços. “O que estamos a falar é de um potencial de custo de mais de 500 milhões de euros se forem dez mil doentes". A presidente da SOS Hepatites Portugal, Emília Rodrigues, diz que a muitos dos doentes mais graves espera-os um transplante de fígado, que custa ao Estado 120 mil euros.

Segundo a responsável, depois da aprovação do Sofosbuvir pela Agência Europeia do Medicamento, este medicamento deu entrada no Infarmed a 22 de Janeiro, estando previsto um prazo máximo de 90 dias para a aprovação. Emília Rodrigues destaca que, mesmo que se trate de 90 dias úteis, esse prazo já terminou e os doentes continuam à espera do único medicamento que os pode salvar.

Segundo informações da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed), o prazo dos 90 dias ainda está a decorrer, uma vez que a contagem interrompe cada vez que é pedida nova informação à empresa.
A legislação assegura que, enquanto o processo negocial decorre, os doentes em situação mais grave possam ter acesso ao fármaco através da figura da Autorização de Utilização Especial (AUE). São pedidos que têm que ser feitos pelo médico para cada doente com a respectiva justificação clínica.

José Manuel Silva revelou que há médicos pressionados pelas administrações hospitalares para não fazerem pedidos de autorização especial para o novo medicamento contra a hepatite C. Outras vezes, os pedidos são feitos mas são bloqueados pelas administrações dos hospitais. “Sabemos que há médicos pressionados pelas administrações hospitalares para não fazerem seguir os pedidos”, revelou, notando “há médicos que neste momento têm medo de falar, porque lhes foi imposta a lei da rolha”.

José Manuel Silva insta os doentes a pedirem ao seu médico cópias dos pedidos de AUE e os enviem à Ordem dos Médicos, para que esta possa intervir e interpelar os conselhos de administração dos hospitais e denunciá-los publicamente. “Sabemos de casos concretos, mas não é altura agora de revelar os hospitais. Têm dificuldades, que compreendemos, decorrentes da Lei dos Compromissos. Quem está a condicionar a posição do Infarmed e dos hospitais é o Ministério da Saúde. A responsabilidade é deles”.

A dirigente da SOS Hepatites disse ter chegado ao seu conhecimento que, em Março, havia 85 pedidos de Autorização de Utilização Especial para o medicamento Sofosbuvir, mas que “alguns estão retidos nas secretarias das administrações dos hospitais”.

 

 

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