Um boletim original

O país está como está porque ninguém se atreve a mudar velhos hábitos.

Um colega meu, professor universitário, deslocou-se a Lisboa para realizar um serviço que lhe foi pedido pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC). Quando perguntou como seria feito o pagamento da viagem responderam-lhe que só tinha que preencher, no final, um "boletim itinerário".

Pediu na secretaria da sua Faculdade esse boletim., preencheu-o com a sua melhor caligrafia, assinou-o devidamente na linha assinalada com “assinatura do servidor do Estado” e preparou o envelope para o enviar por correio normal (chamado snail-mail e a cair rapidamente em desuso). Não percebeu a nota de pé de página que dizia “preenchido em duplicado, devendo o original ser remetido com a respectiva folha à DGCP.” Qual folha? E onde ficaria a enigmática DGCP? Seria a Direcção Geral da Contabilidade Pública já extinta? E para que seria preciso um preenchimento em duplicado se só se remetia o original?

Mas lá seguiu. Qual não foi, porém, o seu espanto quando, não na volta do correio, mas passado um tempo, recebeu do MEC o boletim devolvido, com a indicação de que tinha enviado, em vez de um "original", uma cópia do boletim itinerário. O dito cujo “original”, ficou a saber, tinha de ser adquirido num balcão da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, que detém o “exclusivo”, não sendo fotocopiável nem digitalizável. As perguntas que o meu colega logo fez foram: Como é que o MEC tinha dado conta, neste mundo inundado de fotocópias e cópias digitais, que o impresso enviado não era do modelo oficial e “exclusivo”? E como era possível que uma universidade pública fizesse e distribuísse.cópias aparentemente ilegais? Como tudo tem uma explicação – o meu amigo é cientista – pensou que devia haver um funcionário do MEC, ou porventura mais, cuja rotina diária seria o exame, com atenção paleográfica, da textura do papel e da qualidade da tinta para ver se havia contrafacção do boletim. E mais pensou que, na sua escola, com o orçamento minguado ao extremo, já não havia verba para comprar modelos “exclusivos”.

O MEC não se dignou mandar-lhe o boletim necessário. O meu colega teria de comprar um "original" numa sucursal da Imprensa Nacional - Casa da Moeda. E ele lá foi à mais próxima, perdendo duas horas do seu tempo em filas de trânsito e de gente. Interrogou-se se poderia preencher um novo “boletim itinerário” com este périplo extra, mas não quis complicar uma situação que já não lhe parecia nada simples. Ficou a saber, no balcão, que o modelo 683 tem o custo unitário de 21 cêntimos. O nome “Casa da Moeda” deve vir daí: acumulam pequenas moedas. O “servidor” comprou, preencheu e mandou ao MEC o “original”, esperando que o novo papel servisse. Não servia, pois tinha inadvertidamente deixado um campo em branco. Soube disso, passado o tempo regulamentar, quando recebeu nova carta devolvendo o impresso, pois os funcionários do MEC, no seu “modo funcionário de viver”, tinham sido incapazes de preencher a informação em falta, embora a tivessem. O “servidor do Estado” teria que completar o que faltava no original com a mesma caligrafia e reenviar. A saga ainda não terminou, pois a deslocação ainda não foi paga.

Em suma: para ser ressarcido das despesas de uma banal viagem à capital, o “servidor” gastou ao Estado muito mais, correspondendo ao desperdício do seu tempo de trabalho com a viagem à Casa da Moeda. Não foi só ele que perdeu, fomos nós todos, que pagamos este estado de coisas. Fala-se muito em modernização administrativa, mas, a ser verdade que o dito boletim em papel está generalizado na administração pública, o simplex não passa de um slogan vazio. O “boletim itinerário” é verdadeiramente original: trata-se de uma espécie de papel selado, embora sem selo. Sobreviveu do tempo do Estado Novo. Apesar de parco em palavras, encontram-se nele autênticas pérolas de linguagem, como “via ordinária” e “marcha”, existindo mesmo espaço para indicar o número de quilómetros a pé (não consegui saber quanto se recebe por quilómetro a pé, mas entendo esse subsídio como uma saudável medida de prevenção da obesidade). Neste tempo de Internet rápida, não é possível neste caso nem preenchimento electrónico nem a descarga do formulário em pdf de um site. Os funcionários do MEC e de todos os outros ministérios andam aos papéis, consumindo o seu tempo e o nosso em inutilidades. Eles não percebem sequer que, desde o tempo de Gutenberg, uma qualquer imprensa só pode fornecer cópias e não originais.

O país está como está porque, a avaliar por exemplos como este, ninguém se atreve a mudar velhos hábitos. Nem o ministério que, dito da ciência, deveria ser o primeiro a inovar. Eu, se fosse ao meu colega, nunca mais fazia trabalho nenhum adicional para um ministério que não é deste tempo, não evoluiu nada desde o tempo em que os pobres dos “servidores” tinham de andar em “marcha” por “vias ordinárias”.

"Servidor do Estado” (tcarlos@uc.pt)

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